quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Convite à reflexão nº2.3 - O que o “tabu da morte” revela sobre nós.

“Tem dias que eu fico pensando na vida
E sinceramente não vejo saída.
Como é, por exemplo, que dá pra entender:
A gente mal nasce, começa a morrer.”
(Toquinho e Vinicius de Moraes)

Os versos de Vinícius e Toquinho traduzem com incomparável sutileza a perspectiva freudiana, e de outros antes dele, de que a vida é um momento fugaz que se presta ao retorno à não-vida; já tinha pensado nisso? Freud, mais tarde, usaria esse pensamento como ponto de partida para um dos  principais conceitos de sua teoria: o da pulsão de morte, pelo qual passaremos em outros trabalhos. Neste, no entanto, procurarei concluir nossas considerações sobre a temática que viemos desenvolvendo desde o atentado em Nice, convidando-os a caminhar neste campo do qual sabemos tanto e, ao mesmo tempo, tão pouco. Um conceito que recebe interpretações e contornos desde as primeiras religiões xamânicas, numa tentativa de amenizar a angústia frente à finitude, mas que, ainda hoje, nos espanta por sua implacável concretude. Tratamos-na como a única certeza ante a incógnita da existência, mas, paradoxalmente, nos empenhamos em negá-la até que ela se imponha sobre nós e os que nos são caros; constituímos-na enquanto tabu à medida em que não nos permitimos falar dos mortos, a menos que bem; e usamos e abusamos dela em obras de ficção, onde podemos experienciá-la sem qualquer risco. Estamos falando dos domínios de Hades, Anúbis e de tantas outras divindades que a encarnaram ao longo da trajetória humana: estamos falando da morte. 

Permitam-me iniciar essa exploração através de uma interessante reflexão freudiana no já citado Reflexões em tempos de guerra e morte (1915):

A qualquer um que nos desse ouvidos nos mostrávamos, naturalmente, preparados para sustentar que a morte era o resultado necessário da vida, que cada um deve à natureza uma morte e deve esperar pagar a dívida - em suma, que a morte era natural, inegável e inevitável. Na realidade, contudo, estávamos habituados a nos comportar como se fosse diferente. Revelávamos uma tendência inegável para pôr a morte de lado, para eliminá-la da vida. (…) De fato, é impossível imaginar nossa própria morte e, sempre que tentamos fazê-lo, podemos perceber que ainda estamos presentes como espectadores. Por isso, a escola psicanalítica pôde aventurar-se a afirmar que no fundo ninguém crê na própria morte, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira, que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade”. (Freud, 1915 [2006], vol XIV, p.299)

Essa evidência da assunção inconsciente de que somos imortais nos permite, por sua vez, entender a razão pela qual nos expomos à riscos e buscamos a obtenção de prazer em situações de perigo - saltar de paraquedas, acelerar acima do limite de velocidade, dirigir alcoolizado, comprar briga com desconhecidos, entre muitos outros exemplos - apoiando-nos na prazerosa sensação de onipotência trazida pela ilusão de superação da morte. Por outro lado, grande parte dos avanços tecnológicos da humanidade, como a invenção da pólvora e do avião, não teriam sido possíveis, não fosse pela coragem derivada desse fenômeno, o que faz dele imprescindível para o caminhar da civilização e para a rica experiência humana. Nesse sentido, nós tendemos a relegar os instintos de autoconservação ao segundo plano, permitindo que nossos desejos os superem com uma frequência relativamente elevada, muitas vezes inibindo-os em sua função de proteger a vida enquanto houver vida.

Quando permitimos, contudo, que nossos impulsos de autoconservação predominem, precisamos encontrar outras formas de desafiar a morte e vencer, mecanismo que Freud esclarece na passagem a seguir:

Constitui resultado inevitável de tudo isso que passamos a procurar no mundo da ficção, na literatura e no teatro a compensação pelo que se perdeu na vida. Ali encontraremos pessoas que sabem morrer - que conseguem inclusive matar alguém. Também só ali pode ser preenchida a condição que possibilita nossa reconciliação com a morte: a saber, que por detrás de todas as vicissitudes da vida devemos ainda ser capazes de preservar intacta uma vida, pois é realmente muito triste que tudo na vida deva ser como num jogo de xadrez, onde um movimento em falso pode forçar-nos a desistir dele, com a diferença, porém, de que não podemos começar uma segunda partida, uma revanche. No domínio da ficção, encontramos a pluralidade de vidas de que necessitamos. Morremos como o herói, com o qual nos identificamos; contudo, sobrevivemos a ele e estamos prontos a morrer novamente, desde que com a mesma segurança, com outro herói.” (Freud, 1915 [2006], vol XIV, p.301)

Em outras palavras, além do caráter de compensar aquilo que perdemos ou não podemos ter na realidade, na ficção podemos morrer sem arriscar a vida; morrer de diferentes maneiras e perder “entes queridos” que não são perdidos, ainda que continuem mortos. Podemos assistir novamente um filme, ler um livro pela segunda vez ou reiniciar um jogo eletrônico à partir do último “checkpoint”, neste último caso, podendo até evitar mortes de personagens e reescrever o final da história. A ficção, dessa perspectiva, pode até mesmo atender a nossa demanda por desafiar a morte, aumentando as chances da nossa autoconservação prevalecer sobre o impulso de colocarmos nossas vidas em risco e, com isso, nos prolongá-las. Entretanto, nada é capaz de nos proteger da morte de um ente querido na realidade.

Quem já passou pela terrível experiência de perder alguém próximo conhece bem a angústia frente ao vazio por este deixado - um buraco de difícil reparação, ocasionado pela “perda de uma parte de si, identificada com o outro” - bem como as sensações de frustração e arrependimento pelo tempo que não passaram juntos ou por algo que deveria (ou não) ter sido dito. Em alguns casos, inclusive, até nos culpamos pela morte de alguém a quem não matamos, como se nos coubesse a atribuição divina de poupar sua vida e tivéssemos poder para tal. Evidencia-se, portanto, a força da nossa ilusão de onipotência: nos atribuímos, com frequência, poderes maiores do que aqueles que de fato possuímos e isso, inevitavelmente, fará com que experienciar a morte nos inflija uma dolorosa ferida narcísica, posto que somos, por ela, forçados a enxergar nossa fragilidade e impotência diante dos fatos, bem como lembrados de nossa própria mortalidade, que teimamos em negar. É evidente que o choque parece menor quando se tem algum tempo de preparação, como quando cuidamos de alguém em estado terminal e já esperamos por seu falecimento, mas, provavelmente, isso se deve mais ao início precoce do processo de luto, do que a uma amenização das desilusões ou das angústias. 

Nesse momento em que se revela nossa fragilidade, também se pode observar uma tentativa desesperada de  esconder nossa ambivalência afetiva em relação a quem se foi. “De mortuis nil nisi bonum” (‘Não faleis senão bem dos mortos’) - diz a máxima latina, e não por acaso: em todo sentimento há duas faces opostas, como numa moeda. No amor, por exemplo, há ódio, o que fica fácil de observarmos  em uma briga entre amigos próximos ou entre integrantes de um casal ou de uma família; ódio esse que pode assumir, inconscientemente, a forma de um desejo de morte e, portanto, acentua o sentimento de culpa em relação ao falecimento do ente querido, como se nós tivéssemos tido alguma participação (ainda que exclusivamente subjetiva) nele, razão pela qual só conseguimos ressaltar suas qualidades à partir de então. Esse fenômeno é exposto por Freud através da leitura conjunta dos seguintes fragmentos:

(1)“Esses seres amados constituem, por um lado, uma posse interna, componentes de nosso próprio ego; por outro, contudo, são parcialmente estranhos, até mesmo inimigos. À exceção de apenas pouquíssimas situações, adere à mais terna e à mais íntima de nossas relações amorosas uma pequena parcela de hostilidade que pode excitar um desejo de morte inconsciente.” (Freud, 1915 [2006], vol XIV, p.309)

(2)“Para com a pessoa que morreu, adotamos uma atitude especial - algo próximo da admiração por alguém que realizou uma tarefa muito difícil. Deixamos de criticá-la, negligenciamos suas possíveis más ações, declaramos que ‘de mortuis nil nisi bonum’, e julgamos justificável realçar tudo o que seja de mais favorável à sua lembrança na oração fúnebre e sobre a lápide tumular. A consideração pelos mortos, que, afinal de contas, não mais necessitam dela, é mais importante para nós do que a verdade, e certamente, para a maioria de nós, do que a consideração pelos vivos.” (Freud, 1915 [2006], vol XIV, p.300) 

Assim, se aceitarmos esses pressupostos, poderemos concluir que o tabu da morte denuncia a nossa própria dificuldade em percebermos e aceitarmos a dimensão de nossos próprios sentimentos hostis - assunto pelo qual passamos brevemente no último texto, quando falamos da natureza humana - endereçados a quem amamos, a nossa cegueira frente ao mecanismo psíquico que os transforma em um sentimento (inconsciente) de culpa, expresso nos belos epitáfios que desconsideram os malfeitos do morto, além dos nossos percalços frente ao aflitivo processo de renunciarmos ao nosso ideal narcísico de onipotência, como sugere Freud. 

Ainda haveria muitos pontos interessantes a explorar, mas isso deixaria esse texto, que já está grande, ainda maior. Então, para que possamos fechar nosso tema, ainda que venhamos a retomá-lo mais à frente, proponho uma última reflexão: Partindo do reconhecimento de que possuímos sentimentos ambivalentes para com nossos entes queridos, tentemos identificar também suas faces hostis em relação a eles; essa pode ser uma maneira de fazer as reparações necessárias em vida e, assim, atenuar os grandes arrependimentos à ocasião da morte. 

Referência:

FREUD, S. (1915) Reflexões em tempos de guerra e morte. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006



4 comentários:

  1. Muito bom. Sendo verdadeiro, sem ser sincero demais, talvez facilite esta interação em vida.

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    1. Mais importante ainda é refletir sobre nós mesmos e como nos posicionamos frente à nossa própria mortalidade e às dos que nos são caros, frente às culpas que carregamos e não nos damos conta. Sem dúvida, isso pode ajudar a evitar os "sincericídios"...

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  2. Tema muito espinhoso. Não estamos mesmo preparados para lidar com a partida, seja lá de quem for. E a influência da religiosidade nessas horas pode tornar tudo muito mais difícil, pelo menos para mim; o sujeito é assassinado, morre num acidente ou é vítima de uma terrível doença. E o que muitas vezes ouvimos é "Deus sabe o que faz", "A hora dele tinha chegado", "Ele está melhor agora". Tudo isso, ao meu ver, não passa de uma vã tentativa de tentar explicar o inexplicável. Acho que apesar de toda a evolução humana a morte ainda ser encarada como um tabu. Pelo menos até quando eu morrer, rsrs

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    1. O tema é espinhoso sim, Renan, e por isso achei tão importante trazer essa reflexão. Optei por não falar da religiosidade, pois teria que contemplar muitos aspectos complexos e acabaria deixando esse texto ainda maior, mas é interessante observar que quem traz esse discurso, normalmente, o faz com a intenção de proporcionar certo alento a quem sofreu uma perda. Acho, no entanto, que o efeito depende muito da religiosidade de quem ouve: se você crê que há uma razão maior para a existência humana e para sua partida, ou se crê que a morte não é o fim de tudo, ouvir palavras tais palavras pode trazer grande conforto e suporte na comunidade religiosa. Entretanto, se você não acredita, tais palavras podem ser percebidas como uma forma de "explicar o inexplicável", uma tentativa de diminuir ou suprimir a dor da perda, que deve ser sentida em sua plenitude pelo bem do processo de luto. Concluindo, não há uma receita geral sobre o que dizer nessas horas, pois nunca se poderá prever, inteiramente, como o outro receberá o que lhe é endereçado, os sentimentos de culpa ali em jogo ou a dimensão de sua dor. O melhor, talvez, seja nos limitarmos a reconhecer a legitimidade do sofrimento e nos colocarmos à disposição para oferecermos o suporte quando houver receptividade por parte do enlutado.

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