terça-feira, 14 de março de 2017

Convite à reflexão nº4 - Medicalização da infância: a quem o “transtorno” causa transtorno?

Nos últimos anos, venho acompanhando a ampliação do debate sobre a medicalização da infância no meio acadêmico, que, estranhamente, ainda conta com quase nenhuma participação popular ou divulgação da mídia; por que será? Eu enxergo 3 hipóteses mais óbvias: (1) a indústria farmacêutica, por meio dos anúncios de seus “produtos”, é responsável por uma importante parcela das receitas dos veículos de comunicação, o que pode inibi-los na divulgação de uma questão tão sensível; (2) entre os informados, alguns pais, esgotados pelas exigências do modo de vida contemporâneo e preocupados com seus filhos, parecem preferir um diagnóstico que lhes forneça explicações e aponte para um remédio milagroso, capaz de resolver o problema de forma simples e indolor; e (3) dos profissionais da área de saúde mental, alguns não se importam, outros acreditam nos diagnósticos, há aqueles que se contentam com um debate intelectualizado, pouco inclusivo e cheio de termos técnicos, e os poucos que, de fato, buscam dar visibilidade à questão usando uma linguagem acessível. Hoje eu tentarei entrar para esse último grupo, propondo uma reflexão sobre a nossa conivência, ativa ou passiva, com a “patologização” de comportamentos típicos da infância.

Esse debate, pouco tempo atrás, parecia uma disputa por pacientes entre médicos e psicólogos, onde os primeiros se posicionavam, em geral, favoráveis à medicalização e os segundos, em número considerável, desfavoráveis. Contrários à tendência, contudo, também havia psicólogos entusiastas dos diagnósticos, ansiosos para integrarem o lado reconhecidamente científico da disputa, enquanto alguns médicos, do alto de seu saber quase inquestionável, se deparavam com imprecisões inquietantes e passavam a flertar com o outro grupo. Dentre esses últimos, destaco o psiquiatra e psicanalista brasileiro Rossano Cabral Lima, que critica consistentemente o absurdo aumento do número de diagnósticos de “Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade” (TDA/H) e a consequente explosão do consumo de Ritalina, sobretudo por crianças muito novas.

Segundo ele, o termo medicalização “diz respeito a um processo no qual uma série de comportamentos pessoais, individuais, coletivos/sociais, que não eram descritos com vocabulário médico, não eram entendidos como patologias, não eram passíveis de tratamento/intervenções médicas, passam, então, a sê-lo”(Cabral Lima, Link nº2, 11:49). Não se trata, é evidente, de algo necessariamente bom ou ruim - é até natural do ponto de vista do avanço da ciência médica - mas precisamos ter cuidado ao analisar o assunto, principalmente no tocante às crianças, as quais, por não poderem se manifestar sobre suas próprias questões, consistem num grupo bastante vulnerável. Além disso, um novo diagnóstico, por mais impreciso e irresponsável que seja, pode ter um efeito calmante sobre os pais, categorizando os sintomas dos filhos e conferindo-lhes um “suposto saber” a respeito daquilo que não controlam e lhes causa transtorno. Sobre isso, Cabral Lima acrescenta:

O problema é que, vocês já devem ter visto os critérios diagnósticos para “Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade”, vários de nós e das nossas crianças vão se enquadrar em vários deles ou, pelo menos, em algum deles. Então, esse diagnóstico acabou se transformando, de novo, num grande guarda-chuva. Quem diz que toda hiperatividade, desatenção e impulsividade é sinal de TDA/H? Esses comportamentos podem aparecer como sinal de outros quadros psicopatológicos: crianças ansiosas ou deprimidas podem manifestar esses quadros, com alguns desses comportamentos; crianças com questões outras, que não passam por transtornos mentais, reagindo a situações circunstanciais da escola ou de casa, também podem apresentar esse tipo de questão. A gente não conta com nenhum critério para distinguir uma coisa da outra, né? Essa é a grande dificuldade, ou seja, na dúvida, todas as crianças, apresentando esse tipo de comportamento, acabam sendo candidatas ao diagnóstico e à medicação.” (Cabral Lima, Link nº2, 34:00)

O TDA/H, contudo, não é o único diagnóstico problemático que pressupõe um acompanhamento medicamentoso, que, vale dizer, conta com inúmeros efeitos colaterais que, muitas vezes, não valem o benefício obtido. Nesse mesmo hall, poderíamos falar do TOD (Transtorno Opositivo Desafiador), o qual se presta a patologizar o comportamento “rebelde” de algumas crianças - como o próprio nome sugere -, do próprio Autismo (ou Transtornos de Espectro Autístico), que inclui tanto os autistas (de fato) quanto crianças com pequenas inibições sociais e dificuldades em perceber e expressar emoções, do Transtorno Bipolar na infância, o qual rotula crianças de humor mais explosivo, agressivo ou irritável e, entre muitos outros, o novíssimo TDDH (Transtorno Disruptivo da Desregulação do Humor), que categoriza a “birra” nos conceituados manuais de psiquiatria. As margens entre esses diagnósticos são tão imprecisas, que grande parte das crianças que seriam diagnosticadas com um, também o seriam com outros, o que gera aberrações como os super combos diagnósticos, em que um mesmo indivíduo recebe, por vezes, de dois a quatro dessas rotulações de uma vez.

Nesse sentido, vale a pena relembrarmos alguns trechos do que disse Allen Francis, médico emérito da Universidade de Duke e responsável direto, durante anos, pela equipe que publicou as últimas edições da “Bíblia da Psicopatologia”, o DSM, em entrevista concedida ao jornal “El País”, em Setembro de 2014. Respondendo à uma pergunta sobre o “mea culpa” em sua última publicação e às críticas feitas, por ele, aos colegas que desenvolveram o DSM-V, Allen declara:

Fomos muito conservadores e só introduzimos [no DSM-IV] dois dos 94 novos transtornos mentais sugeridos. Ao acabar, nos felicitamos, convencidos de que tínhamos feito um bom trabalho. Mas o DSM-IV acabou sendo um dique frágil demais para frear o impulso agressivo e diabolicamente ardiloso das empresas farmacêuticas no sentido de introduzir novas entidades patológicas. Não soubemos nos antecipar ao poder dos laboratórios de fazer médicos, pais e pacientes acreditarem que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de fácil solução. O resultado foi uma inflação diagnóstica que causa muito dano, especialmente na psiquiatria infantil. Agora, a ampliação de síndromes e patologias no DSM-V vai transformar a atual inflação diagnóstica em hiperinflação”. (Francis, Allen. Link 1)

Raciocínio ao qual, após ser perguntado sobre se agora seríamos, portanto, todos doentes mentais, ele acrescenta: 

Algo assim. Há seis anos, encontrei amigos e colegas que tinham participado da última revisão e os vi tão entusiasmados que não pude senão recorrer à ironia: vocês ampliaram tanto a lista de patologias, eu disse a eles, que eu mesmo me reconheço em muitos desses transtornos. Com frequência me esqueço das coisas, de modo que certamente tenho uma demência em estágio preliminar; de vez em quando como muito, então provavelmente tenho a síndrome do comedor compulsivo; e, como quando minha mulher morreu a tristeza durou mais de uma semana e ainda me dói, devo ter caído em uma depressão. É absurdo. Criamos um sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos mentais”.(Francis, Allen. Link 1)

Uma consequência complicada desse fenômeno é que o médico que não diagnostica conforme o esperado e, ao invés disso, sugere uma terapia ou procura entender o que estaria por trás dos tais comportamentos “desajustados”, tende a ser visto pelos pais, professores e outros médicos como incompetente, afinal, teria falhado na identificação do problema. Pensando nisso, lhes coloco o seguinte questionamento: por que insistimos nesta noção do “quanto mais, melhor” no campo da psicopatologia infantil, quando o esperado seria encontrar a lógica contrária, o “quanto menos, melhor”? Se o que queremos é que nossos filhos tenham saúde, ou seja, que não tenham diagnósticos psiquiátricos, por que nos apressamos em condenar os médicos que não os distribuem tão facilmente? Uma resposta possível seria supor que existe, no imaginário das pessoas, a certeza de uma disfunção socialmente injustificável na criança.

Se pudermos aceitar essa hipótese, então qual seria o fundamento para esse raciocínio? De onde concluímos que o meio, onde a criança está inserida, de nada contribui para seu comportamento disfuncional? Arrisco-me a dizer que a origem dessa lógica é defensiva. Explico: se eu reconheço que meu filho tem um problema e determino que a fonte está em alguma alteração exclusivamente fisiológica, isso me isenta de qualquer responsabilidade tanto pelo desajuste quanto pelos cuidados, os quais posso delegar totalmente ao médico, a quem caberá receitar um remédio milagroso e resolver o problema. Nesse sentido, em termos econômico-narcísicos, podemos dizer que é mais tolerável aceitar que meu filho tenha um sintoma pelo qual não sou responsável e cuja cura não depende de mim a, além de reconhecê-lo, perceber que eu talvez faça parte do problema e que precisarei realizar ajustes para auxiliar em sua remissão.

Dito isso, é preciso fazer uma importante ressalva: Não se trata de culpabilizar os pais. Pelo contrário, eles são os maiores aliados da criança em sua recuperação, uma vez que, excluídas às moléstias verdadeiramente oriundas más-formações, falhas genéticas ou antígenos (vírus, bactérias, etc.), os sintomas não se referem à um ou dois indivíduos apenas, mas à toda a família, podendo se estender à outros núcleos de convívio social. Por ainda contar com poucos recursos psíquicos e mecanismos de defesa rudimentares, as crianças se tornam especialmente vulneráveis aos excessos e ausências do meio, os quais o psicólogo, algumas vezes em parceria com o psiquiatra, deverá identificar e traduzir para a família de modo a implicar todos os membros na busca por um equilíbrio relacional mais funcional.

Finalmente, depois de tudo que expus aqui, pergunto-lhes: de quem é o transtorno? Da criança, muitas vezes objeto de diagnósticos imprecisos e questionáveis, expressando um sintoma oriundo, muitas vezes, de forças externas com as quais ainda não consegue lidar, ou seria dos pais, que além de terem suas próprias questões existenciais, responsabilidades e preocupações, precisam lidar com um filho inquieto, ou dos profissionais de saúde, que após elevarem a saúde ao estatuto de doença, já não conseguem mais distinguir uma da outra? Pensem nisso.


Referências:

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders Ed 4(DSM-IV). Washington DC, American Psychiatric Association 1994.

LIMA, R. C. Somos todos desatentos?: O TDA/H e a Construcão de Bioidentidades, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005