terça-feira, 2 de maio de 2017

Recurso à ficção nº3 - Dos 13 porquês aos 50 desafios.

Lançada pela Netflix no final de Março de 2017, “13 reasons why” (ou “os 13 porquês”) vem mobilizando as redes sociais pela maneira como abordou temas densos como o suicídio, o bullying e a violência sexual. Aclamada por grande parte do público, a série também provocou revolta naqueles que nela viram uma tentativa de romantizar o sofrimento psíquico e de sugerir que pôr um fim à própria vida seria uma alternativa aceitável à angústia prolongada, ou uma forma eficaz de “mandar um recado” a supostos algozes. Nesse sentido, tendo a compartilhar da preocupação que orbita o sucesso da obra, exatamente por pensar que muitos jovens têm na ficção uma ferramenta que os auxilia na elaboração (digestão/assimilação) das experiências adolescentes, para as quais, este caso específico, parece fornecer referências eticamente questionáveis. Por outro lado, no entanto, desde o lançamento da série, o Centro de Valorização da Vida (CVV), que oferece atendimento psicológico gratuito 24h por dia via internet, registrou um aumento de 445% nos pedidos de ajuda recebidos em seus canais. Segundo matéria da Exame, uma parte considerável dos novos usuários do serviço disse se identificar com Hannah (personagem suicida), e buscavam suporte para terem um destino diferente do dela. Levando isso em consideração, ao invés de recomendar que a série não seja assistida, como muitos profissionais da saúde mental têm feito, prefiro propor que seja vista, pensada e falada em família, de modo a fortalecer os vínculos entre os membros e oferecer continente aos afetos que venham à tona. Da minha parte, tentarei chamar atenção para alguns aspectos relevantes para orientar essa discussão, aproveitando para comentar o recente e preocupante “jogo da baleia azul”. O texto abaixo contém spoilers da série; boa leitura!

A série nos apresenta Clay Jensen (17 anos), um aluno introvertido do ensino médio, em uma postura reflexiva pelos corredores da escola em que estuda, de onde observava com estranhamento a (quase) inalterada rotina dos colegas, tão pouco tempo depois do suicídio de uma amiga que também era seu interesse amoroso. Naquele instante, ele avista duas meninas tirando uma “selfie” em frente às homenagens coladas ao escaninho de Hannah, foto que logo é postada numa rede social com a hashtag “nunca esqueceremos”, dizeres contrastantes com a aparente indiferença da dupla. Esta primeira cena pode ser entendida como uma crítica tanto à forma como, hoje, tendemos a naturalizar acontecimentos significativos quanto à necessidade de fingirmos nos importar com algo, visando exclusivamente a aprovação de um grupo ou comunidade; ambos, pontos a serem melhor explorados num futuro trabalho.

Numa próxima cena, Clay chega em casa e encontra um pacote endereçado a ele, contendo um mapa e sete fitas-cassete com mensagens póstumas de Hannah, nas quais ela narra, em tom de ironia levemente sádico, os motivos que a levaram a tirar a própria vida. Incrédulo, diante do toca-fitas, o rapaz escuta, na voz da própria menina, a seguinte introdução: “Oi, é a Hannah, Hannah Baker. (…) Pegue um lanche, acomode-se, porque eu estou prestes a te contar a história da minha vida. Mais especificamente, como minha vida terminou. E se você está ouvindo esta fita, você é um dos porquês”. Como consequência, Clay entra num estado transitório de ansiedade e paranóia, se esforçando para lembrar de qualquer situação que justificasse a alegação da moça e temendo ser perseguido por quem quer que descobrisse o que ele, supostamente, teria feito à sua colega. Mais tarde, de posse do Walkman furtado de um amigo, o rapaz segue ouvindo à gravação, que diz: “as regras aqui são muito simples, são apenas duas: número um, você ouve; número dois, você passa adiante. Espero que nenhuma seja fácil. Não é para ser fácil, ou eu teria enviado um MP3 por e-mail. Quando tiver terminado de assistir aos 13 lados, pois há 13 lados para cada história, rebobine as fitas, coloque-as na caixa e passe-a para a próxima pessoa. Ah! e a caixa de fitas deve ter um mapa. Eu deverei mencionar diversos locais de nossa adorada cidade; não posso forçá-lo a visitá-los, mas se quiser uma percepção maior, siga as estrelas, ou, sei lá, jogue o mapa fora e eu nunca saberei, ou… será que vou? 

Lendo atentamente às passagens transcritas, primeiras de muitas com mesmo teor, podemos perceber que o objetivo principal das fitas não era veicular um pedido de socorro ou expressar as angústias de Hannah, mas colocar em curso uma elaborada vingança contra aqueles que ela considerava responsáveis por seu suicídio, cujo resultado ela própria não testemunharia. Além disso, as fitas possuem um lado para cada um dos 13 “culpados”, ou seja, nenhum dos “porquês” é atribuído à própria suicida que, em última análise, é quem toma a decisão e comete o ato de dar fim à própria vida. Essas compreensões tornam possível reconhecermos a incapacidade de Hanna se implicar em seu próprio sofrimento ou nas consequências dos seus atos, fornecendo a base para postularmos que Hannah apresenta uma personalidade excessivamente projetiva, ou seja, que como principal mecanismo de defesa, inconscientemente expulsa os aspectos “maus” (persecutórios) de seu mundo interno e os lança sobre terceiros, de onde esses aspectos retornam fundidos a seus hospedeiros, convertendo-os em perseguidores. Dito de outra forma, em diversos momentos da narrativa, a enorme agressividade da protagonista (expressa diretamente ou em forma de ironia) é projetada sobre outros personagens, que passam a ser percebidos por ela como hostis e mal-intencionados. Alex, por exemplo, que tornou-se um “porquê” ao divulgar entre colegas uma lista, onde ranqueava as meninas de sua escola de acordo com seus “atributos” (lábios, busto, etc.), foi percebido por Hannah como hostil por sua menção a ela enquanto dona da “melhor bunda”, enquanto a garota relacionada por seus belos lábios se mostrava orgulhosa e envaidecida. Vale, também, lembrar que o rapaz em questão já figurava como um alvo provável para as projeções de Hanna, uma vez que, na percepção dela, ele fora responsável tanto pela dissolução de seu grupo de amigos quanto pelo fim da amizade com Jéssica.

Não se trata, obviamente, de diminuir o peso ou relativizar as experiências traumáticas vividas pela personagem, entre as quais estão dois estupros cometidos por Bryce: um sofrido e um presenciado, qualquer um dos quais com potencial para lançar uma pessoa comum numa depressão grave e de difícil recuperação. Também podemos falar das ações de Marcus, que deixaram Hannah numa situação de grande desamparo ao transformar um encontro romântico numa situação invasiva e objetificante, quando o rapaz tomou certas liberdades com a garota para impressionar os amigos; poderíamos falar de Justin, que permitiu que os colegas vissem e compartilhassem uma foto constrangedora da menina em seu celular; e também de Tyler, que acompanhou, invadiu a privacidade e tirou uma foto comprometedora de Hannah com uma amiga, vindo a distribuí-la aos alunos da escola por vingança. Todos a frustraram ou violentaram de alguma forma, contudo, em sua particularidade projetiva, Hannah já havia, àquela altura, designado todos os seus amigos como perseguidores e não tinha mais a quem recorrer, senão ao conselheiro escolar, que também acaba virando um “porquê” após falhar em demovê-la de sua intenção suicida.

Por sua vez, pela forma como a série apresenta, a importância dada a esses casos é a mesma conferida às ações de Courtney que, por medo de que alguma cobrança recaísse sobre seus pais gays, recusa-se a assumir sua própria homossexualidade e o desejo por Hannah, espalhando uma mentira sobre a mesma para não ser associada a ela; Sheri, que acidentalmente derrubou uma placa de trânsito e, por medo, fugiu do local deixando a amiga para trás, onde mais tarde ocorreria um acidente fatal; Ryan, que furtou e publicou um poema escrito pela protagonista; Zach, que tentou se aproximar da moça num momento inoportuno e por ela foi magoado, vindo a cometer alguns equívocos na sequência; e o “bom moço” Clay que, confundido com um agressor numa cena de intimidade entre os dois, é repelido pela menina e acata o que lhe é demandado: sair de perto e deixar a festa quando, a despeito do que disse, Hannah necessitava que ele houvesse ficado. Este último, aliás, foi o único momento em que a protagonista esteve perto de reconhecer um erro próprio, mas, incapaz de fazê-lo, culpou o rapaz.

Hannah é, sem dúvida, uma personagem em intenso sofrimento psíquico, somente sendo capaz de vincular-se pela via da agressão, como fica claro no início da amizade com Jéssica e nos flashbacks com Clay, funcionamento cuja consequência natural é o posterior ataque aos vínculos construídos, que se prestam a testar tanto a capacidade de sobrevivência dos mesmos quanto a destrutividade da própria Hannah. Como resultado, se os amigos se afastam, a menina entende que seus vínculos são frágeis e pouco confiáveis, e tem a comprovação de sua própria destrutividade, gerando um aumento do caos em seu mundo interno que, por sua vez, torna-se insuportável e intensifica o mecanismo projetivo: um ciclo vicioso. Ela é, sobretudo, vítima de si mesma e, por ser incapaz de reconhecer sua participação na própria jornada trágica, vê a todos como entidades hostis e se fecha a qualquer possibilidade de obtenção de ajuda, tanto dos amigos quanto de seus pais, os quais, apesar dos problemas cotidianos, se mostram até receptivos e disponíveis a uma aproximação da filha.

Como poderíamos ajudar alguém na situação de Hannah? Não há uma “receita de bolo”, com adaptações sendo necessárias caso a caso, mas, primordialmente, precisamos ser capazes de nos aproximar e sobreviver a seus ataques. Fazendo isso, teremos tanto a possibilidade de demonstrar a confiabilidade do vínculo estabelecido entre as partes quanto de mostramos, à pessoa em questão, que sua destrutividade não é absoluta como se fizera parecer na onipotência inconsciente. Assim, podemos gradualmente aliviar o caráter persecutório do mundo interno e abrir o canal para o diálogo com o exterior, até mesmo para que ocorra a aceitação de uma oferta de ajuda, como um acompanhamento profissional. Essa estratégia pode ajudar, inclusive, na prevenção de casos como os relacionados ao “jogo da baleia azul”, onde são propostos desafios que incluem auto-mutilações e culminam com o suicídio do participante.

Este último, nada mais é que um sistema de desafios perverso, originado na Rússia e com baixíssimas possibilidades de virar moda no Brasil, mas que surgiu como um perigo real devido à ampla divulgação da mídia tradicional em todo o ocidente. Este “jogo” exige atenção especial por endereçar desafios a jovens já fragilizados, numa idade em que estão, particularmente, sucetíveis a seguirem tendências em prol de um sentimento de pertença, tão necessário à construção da identidade do adolescente. Portanto, aproxime-se de seus filhos e amigos, observe e mostre-se disponível a conversar; aposte na força do vínculo entre vocês. A maior ameaça, como defendi neste texto, não está fora, mas dentro do jovem, onde também se encontra a solução. 

Notas de Rodapé:

  1. De forma simples, Bullying é uma palavra oriunda do inglês, frequentemente empregada para designar a prática prolongada do assédio moral com ameaças ou efetiva prática de violência física contra a vítima. Não se trata das provocações consideradas “normais” entre os jovens, mas de um comportamento sádico vindo de um indivíduo ou de um grupo que obtém prazer em produzir sofrimento num sujeito mais frágil, contando com sua pouca ou nenhuma probabilidade de reagir.
  2. Spoiler é, na prática, falar sobre aspectos relevantes de uma história, com potencial para estragar a experiência de quem ainda não leu/assistiu. É contar o final da história, basicamente.
  3. Selfie é uma apropriação abreviada do termo “self portrait”, do inglês, que pode ser traduzido como “auto-retrato”. Ganhou popularidade com o advento das câmeras fotográficas digitais, que permitiam tirar quantas fotos coubessem na memória do dispositivo, deletar as que não agradassem e verificar o enquadramento antes do clique, fenômeno que se intensificou com a inclusão das câmeras nos celulares.  
  4. Também de forma símples, hashtags são palavras ou frases iniciadas pelo caractere “#” com o objetivo de etiquetar uma publicação na internet. Costumam ser utilizadas para expressar um posicionamento pessoal frente a uma questão ou externar sentimentos de modo padronizado, permitindo o agrupamento e localização de postagens marcadas com os mesmos dizeres.
  5. No caso de uma narrativa, flashbacks são retornos a cenas ocorridas no passado, levando em conta a passagem do tempo na obra literária ou audiovisual.

Referências:



KLEIN, M. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945) - Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996.

PICHON-RIVIÈRE, E. Teoria do vínculo - 7ª edição - São Paulo: Martins Fontes, 2007.

terça-feira, 14 de março de 2017

Convite à reflexão nº4 - Medicalização da infância: a quem o “transtorno” causa transtorno?

Nos últimos anos, venho acompanhando a ampliação do debate sobre a medicalização da infância no meio acadêmico, que, estranhamente, ainda conta com quase nenhuma participação popular ou divulgação da mídia; por que será? Eu enxergo 3 hipóteses mais óbvias: (1) a indústria farmacêutica, por meio dos anúncios de seus “produtos”, é responsável por uma importante parcela das receitas dos veículos de comunicação, o que pode inibi-los na divulgação de uma questão tão sensível; (2) entre os informados, alguns pais, esgotados pelas exigências do modo de vida contemporâneo e preocupados com seus filhos, parecem preferir um diagnóstico que lhes forneça explicações e aponte para um remédio milagroso, capaz de resolver o problema de forma simples e indolor; e (3) dos profissionais da área de saúde mental, alguns não se importam, outros acreditam nos diagnósticos, há aqueles que se contentam com um debate intelectualizado, pouco inclusivo e cheio de termos técnicos, e os poucos que, de fato, buscam dar visibilidade à questão usando uma linguagem acessível. Hoje eu tentarei entrar para esse último grupo, propondo uma reflexão sobre a nossa conivência, ativa ou passiva, com a “patologização” de comportamentos típicos da infância.

Esse debate, pouco tempo atrás, parecia uma disputa por pacientes entre médicos e psicólogos, onde os primeiros se posicionavam, em geral, favoráveis à medicalização e os segundos, em número considerável, desfavoráveis. Contrários à tendência, contudo, também havia psicólogos entusiastas dos diagnósticos, ansiosos para integrarem o lado reconhecidamente científico da disputa, enquanto alguns médicos, do alto de seu saber quase inquestionável, se deparavam com imprecisões inquietantes e passavam a flertar com o outro grupo. Dentre esses últimos, destaco o psiquiatra e psicanalista brasileiro Rossano Cabral Lima, que critica consistentemente o absurdo aumento do número de diagnósticos de “Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade” (TDA/H) e a consequente explosão do consumo de Ritalina, sobretudo por crianças muito novas.

Segundo ele, o termo medicalização “diz respeito a um processo no qual uma série de comportamentos pessoais, individuais, coletivos/sociais, que não eram descritos com vocabulário médico, não eram entendidos como patologias, não eram passíveis de tratamento/intervenções médicas, passam, então, a sê-lo”(Cabral Lima, Link nº2, 11:49). Não se trata, é evidente, de algo necessariamente bom ou ruim - é até natural do ponto de vista do avanço da ciência médica - mas precisamos ter cuidado ao analisar o assunto, principalmente no tocante às crianças, as quais, por não poderem se manifestar sobre suas próprias questões, consistem num grupo bastante vulnerável. Além disso, um novo diagnóstico, por mais impreciso e irresponsável que seja, pode ter um efeito calmante sobre os pais, categorizando os sintomas dos filhos e conferindo-lhes um “suposto saber” a respeito daquilo que não controlam e lhes causa transtorno. Sobre isso, Cabral Lima acrescenta:

O problema é que, vocês já devem ter visto os critérios diagnósticos para “Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade”, vários de nós e das nossas crianças vão se enquadrar em vários deles ou, pelo menos, em algum deles. Então, esse diagnóstico acabou se transformando, de novo, num grande guarda-chuva. Quem diz que toda hiperatividade, desatenção e impulsividade é sinal de TDA/H? Esses comportamentos podem aparecer como sinal de outros quadros psicopatológicos: crianças ansiosas ou deprimidas podem manifestar esses quadros, com alguns desses comportamentos; crianças com questões outras, que não passam por transtornos mentais, reagindo a situações circunstanciais da escola ou de casa, também podem apresentar esse tipo de questão. A gente não conta com nenhum critério para distinguir uma coisa da outra, né? Essa é a grande dificuldade, ou seja, na dúvida, todas as crianças, apresentando esse tipo de comportamento, acabam sendo candidatas ao diagnóstico e à medicação.” (Cabral Lima, Link nº2, 34:00)

O TDA/H, contudo, não é o único diagnóstico problemático que pressupõe um acompanhamento medicamentoso, que, vale dizer, conta com inúmeros efeitos colaterais que, muitas vezes, não valem o benefício obtido. Nesse mesmo hall, poderíamos falar do TOD (Transtorno Opositivo Desafiador), o qual se presta a patologizar o comportamento “rebelde” de algumas crianças - como o próprio nome sugere -, do próprio Autismo (ou Transtornos de Espectro Autístico), que inclui tanto os autistas (de fato) quanto crianças com pequenas inibições sociais e dificuldades em perceber e expressar emoções, do Transtorno Bipolar na infância, o qual rotula crianças de humor mais explosivo, agressivo ou irritável e, entre muitos outros, o novíssimo TDDH (Transtorno Disruptivo da Desregulação do Humor), que categoriza a “birra” nos conceituados manuais de psiquiatria. As margens entre esses diagnósticos são tão imprecisas, que grande parte das crianças que seriam diagnosticadas com um, também o seriam com outros, o que gera aberrações como os super combos diagnósticos, em que um mesmo indivíduo recebe, por vezes, de dois a quatro dessas rotulações de uma vez.

Nesse sentido, vale a pena relembrarmos alguns trechos do que disse Allen Francis, médico emérito da Universidade de Duke e responsável direto, durante anos, pela equipe que publicou as últimas edições da “Bíblia da Psicopatologia”, o DSM, em entrevista concedida ao jornal “El País”, em Setembro de 2014. Respondendo à uma pergunta sobre o “mea culpa” em sua última publicação e às críticas feitas, por ele, aos colegas que desenvolveram o DSM-V, Allen declara:

Fomos muito conservadores e só introduzimos [no DSM-IV] dois dos 94 novos transtornos mentais sugeridos. Ao acabar, nos felicitamos, convencidos de que tínhamos feito um bom trabalho. Mas o DSM-IV acabou sendo um dique frágil demais para frear o impulso agressivo e diabolicamente ardiloso das empresas farmacêuticas no sentido de introduzir novas entidades patológicas. Não soubemos nos antecipar ao poder dos laboratórios de fazer médicos, pais e pacientes acreditarem que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de fácil solução. O resultado foi uma inflação diagnóstica que causa muito dano, especialmente na psiquiatria infantil. Agora, a ampliação de síndromes e patologias no DSM-V vai transformar a atual inflação diagnóstica em hiperinflação”. (Francis, Allen. Link 1)

Raciocínio ao qual, após ser perguntado sobre se agora seríamos, portanto, todos doentes mentais, ele acrescenta: 

Algo assim. Há seis anos, encontrei amigos e colegas que tinham participado da última revisão e os vi tão entusiasmados que não pude senão recorrer à ironia: vocês ampliaram tanto a lista de patologias, eu disse a eles, que eu mesmo me reconheço em muitos desses transtornos. Com frequência me esqueço das coisas, de modo que certamente tenho uma demência em estágio preliminar; de vez em quando como muito, então provavelmente tenho a síndrome do comedor compulsivo; e, como quando minha mulher morreu a tristeza durou mais de uma semana e ainda me dói, devo ter caído em uma depressão. É absurdo. Criamos um sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos mentais”.(Francis, Allen. Link 1)

Uma consequência complicada desse fenômeno é que o médico que não diagnostica conforme o esperado e, ao invés disso, sugere uma terapia ou procura entender o que estaria por trás dos tais comportamentos “desajustados”, tende a ser visto pelos pais, professores e outros médicos como incompetente, afinal, teria falhado na identificação do problema. Pensando nisso, lhes coloco o seguinte questionamento: por que insistimos nesta noção do “quanto mais, melhor” no campo da psicopatologia infantil, quando o esperado seria encontrar a lógica contrária, o “quanto menos, melhor”? Se o que queremos é que nossos filhos tenham saúde, ou seja, que não tenham diagnósticos psiquiátricos, por que nos apressamos em condenar os médicos que não os distribuem tão facilmente? Uma resposta possível seria supor que existe, no imaginário das pessoas, a certeza de uma disfunção socialmente injustificável na criança.

Se pudermos aceitar essa hipótese, então qual seria o fundamento para esse raciocínio? De onde concluímos que o meio, onde a criança está inserida, de nada contribui para seu comportamento disfuncional? Arrisco-me a dizer que a origem dessa lógica é defensiva. Explico: se eu reconheço que meu filho tem um problema e determino que a fonte está em alguma alteração exclusivamente fisiológica, isso me isenta de qualquer responsabilidade tanto pelo desajuste quanto pelos cuidados, os quais posso delegar totalmente ao médico, a quem caberá receitar um remédio milagroso e resolver o problema. Nesse sentido, em termos econômico-narcísicos, podemos dizer que é mais tolerável aceitar que meu filho tenha um sintoma pelo qual não sou responsável e cuja cura não depende de mim a, além de reconhecê-lo, perceber que eu talvez faça parte do problema e que precisarei realizar ajustes para auxiliar em sua remissão.

Dito isso, é preciso fazer uma importante ressalva: Não se trata de culpabilizar os pais. Pelo contrário, eles são os maiores aliados da criança em sua recuperação, uma vez que, excluídas às moléstias verdadeiramente oriundas más-formações, falhas genéticas ou antígenos (vírus, bactérias, etc.), os sintomas não se referem à um ou dois indivíduos apenas, mas à toda a família, podendo se estender à outros núcleos de convívio social. Por ainda contar com poucos recursos psíquicos e mecanismos de defesa rudimentares, as crianças se tornam especialmente vulneráveis aos excessos e ausências do meio, os quais o psicólogo, algumas vezes em parceria com o psiquiatra, deverá identificar e traduzir para a família de modo a implicar todos os membros na busca por um equilíbrio relacional mais funcional.

Finalmente, depois de tudo que expus aqui, pergunto-lhes: de quem é o transtorno? Da criança, muitas vezes objeto de diagnósticos imprecisos e questionáveis, expressando um sintoma oriundo, muitas vezes, de forças externas com as quais ainda não consegue lidar, ou seria dos pais, que além de terem suas próprias questões existenciais, responsabilidades e preocupações, precisam lidar com um filho inquieto, ou dos profissionais de saúde, que após elevarem a saúde ao estatuto de doença, já não conseguem mais distinguir uma da outra? Pensem nisso.


Referências:

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders Ed 4(DSM-IV). Washington DC, American Psychiatric Association 1994.

LIMA, R. C. Somos todos desatentos?: O TDA/H e a Construcão de Bioidentidades, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005





terça-feira, 27 de setembro de 2016

Recurso à ficção nº2 - “500 dias” de paixão, e porquê Summer estava com a razão.

O presente artigo é um recorte feito à partir do trabalho “A compulsão à repetição no campo das paixões tóxicas a partir da analise do filme ‘500 days of Summer’ (500 dias com ela)”, desenvolvido em parceria com a psicóloga, à época estudante, Karine Szuchman, em 2011, como forma de avaliação da disciplina eletiva ministrada pelo professor e psicanalista Victor E. S. Bento, no Instituto de Psicologia da UFRJ. Este foi, sem dúvida, o ponto de partida do meu interesse pela clínica com casais, um dos fatores que, mais tarde, me levariam à atual Especialização em Psicoterapia de Família e Casal, na PUC-Rio. Espero que vocês gostem desta análise, e que ela os ajude na aquisição de novas percepções sobre si mesmos e seus relacionamentos, mas cuidado: contém Spoilers do filme!

500 days of Summer” (500 dias de Verão, em uma tradução literal, ou 500 dias com ela, como ficou conhecido no Brasil) é um filme que busca apresentar a versão do autor, Scott Neustadter, a respeito do fracasso de seu relacionamento com uma moça com quem se envolveu durante sua pós-graduação na London School of Economics, e que inspirou a personagem Summer Finn. Porém, segundo o próprio autor, em entrevista ao site ‘salon.com’, quando confrontada por seu roteiro, sua “musa” afirmou se identificar com o personagem Tom Hansen, o que o deixou convencido do não reconhecimento, por ela, das próprias ações e de sua “grande habilidade” em tirá-lo do sério. Mas será que é só isso? 

O enredo traz a perspectiva do personagem Tom e se inicia no dia 290, logo após o término do relacionamento, numa cena em que ele personifica seu vazio interior, quebrando pratos, um após o outro, sem demonstrar qualquer emoção até ser interrompido por sua irmã pré-adolescente, tida como a “última esperança” de seus amigos para fazê-lo recobrar a razão. Dali em diante, a trama procura alternar cenas ocorridas nos dias anteriores, que mostram a ascenção e o declínio do relacionamento, e aquelas ocorridas nos dias posteriores, onde o protagonista se vê às voltas com a falta e tenta encontrar soluções para ela. Esse recurso, aliado à divisão da tela entre as expectativas e a realidade, à expressiva trilha sonora e aos momentos em que Tom sonha acordado se deixando levar por suas fantasias, acabam por nos fornecer uma rica visão sobre a subjetividade do personagem, material que servirá de base para esta interpretação e que, a meu ver, faz de “500 dias” um exemplo quase didático sobre a paixão e de suas diferenças para com o amor.

O filme começa com a seguinte advertência: “NOTA DO AUTOR: Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Especialmente você, Jenny Beckman. Sua ****!”. A agressividade contra a mulher escondida sob o pseudônimo é inegável, mas a ironia empregada acaba por disfarçar aquele em um momento bem-humorado, leve, arrancando pelo menos um sorriso de canto de boca de quem assiste. Entretanto, com a intervenção do narrador, logo na sequência, tudo se torna mais claro: “Essa é uma história em que um garoto conhece uma garota, mas estejam avisados: essa não é uma história de amor”. É uma história sobre a paixão - eu complementaria, e vocês entenderão o motivo.

Resumindo, Tom é um arquiteto frustrado que leva uma vida medíocre e entediante trabalhando como escritor de cartões, destes que damos e/ou ganhamos em “ocasiões especiais”, vivendo uma vida sem brilho até que avista Summer, a secretária recém-contratada pela firma. Nesse momento, o narrador nos conta que o personagem “cresceu acreditando que nunca seria verdadeiramente feliz até que encontrasse a mulher de sua vida” - uma idealização de que seria possível sentir-se completo, pleno, uma vez que encontrasse essa “musa, até então, sem rosto” - e que “soube, quase imediatamente”, que ela era essa mulher - atribuindo instantaneamente, portanto, um rosto à tal musa. Estamos falando do tal “amor à primeira vista”, que, arrisco dizer, todos já sentiram alguma vez na vida e que de amor nada tem. Amor seria o endereçamento de uma significativa porção de afeto a um outro, ou seja, pressupõe o reconhecimento consciente da alteridade, das diferenças entre os dois envolvidos, seus acertos e falhas, além da noção básica de que esse outro não é capaz de te oferecer completude e que pode até ser irritante, decepcionar e magoar de vez em quando, mas ainda assim é desejável tê-lo por perto. Tom, por sua vez, não conhecendo nada sobre Summer, tem na moça uma “tela em branco” sobre a qual pode projetar sua musa idealizada, aquela que será capaz de tirá-lo de sua miséria e alçá-lo à tão desejada completude: ela seria, para ele, “a outra metade da laranja”. Concluindo, Tom está apaixonado.

A narrativa também mostra o quanto essa paixão pode criar distância entre o sujeito e o objeto de sua adoração: Tom, vendo Summer como sua musa, sente-se tão aquém dela que tem grandes dificuldades em se aproximar, como se o risco de tentar alcançar o paraíso fosse, para sempre, perdê-lo junto ao seu ideal de “verdadeira felicidade”. O protagonista idealiza o encontro, mas não se sente capaz de torná-lo realidade, até que a moça resolve encurtar essa distância psíquica imposta por ele e, no elevador, quebra o silêncio dizendo amar a banda responsável pela música melancólica que ele vinha escutando em seu Headphone - um símbolo claro de seu fechamento ao contato. O rapaz demora a acreditar que a jovem descera do pedestal, no qual ele a pusera, e se dirigira a ele para dizer ter, com ele, um interesse em comum, dando uma nova dimensão ao seu apaixonamento: no lugar da distância, a possibilidade de proximidade, e no lugar daquilo que falta, daquilo que o completaria, aquilo que é igual, que coincide.

Tom e Summer começam a se envolver, ambos entorpecidos pela paixão, vivendo intensamente a ilusão de completude fornecida por esse encontro com uma projeção de si mesmos sobre o outro. O protagonista passa a se mostrar seguro e bem-humorado, e, inspirado por esse turbilhão passional, começa a escrever as frases mais sensíveis e perspicazes para a empresa na qual trabalha, conquistando maior destaque profissional. No encontro com a moça, ele acha graça das coisas mais bobas e minimiza qualquer situação que fuja à ilusão de perfeição, recusando-se a ver Summer por quem ela realmente é: uma pessoa que, por mais que tenha alguns interesses em comum com ele, também possui seus próprios pontos de vista e aspirações, muitas vezes divergentes. 

É preciso dizer, no entanto, que esse é um processo bastante normal - e a ex-namorada do autor que o diga: é por isso que temos tanta facilidade em nos identificar com Tom, pintando sua musa como uma “sem-coração” que acenara para ele com a possibilidade de uma vida a dois, mas que se recusa e busca o rompimento, casando-se com um terceiro. Contudo, o que frequentemente nos escapa à percepção quando assistimos ao filme - não por acaso - é que a moça também estava apaixonada por Tom, mas que à partir de um certo ponto, sua idealização projetada sobre ele começa a ruir e ela se vê diante de um homem falho, que não a completa, e que parece incapaz de abrir mão da imagem idealizada que tem dela, de vê-la por quem ela é. Sozinha nessa relação com um cara que insiste em rir das mesmas bobagens dos tempos apaixonados e não enxergar sua subjetividade, Summer não consegue ascender ao amor e busca o rompimento, vindo a relacionar-se com um homem que, provavelmente, fora capaz de apaixonar-se, desapaixonar-se e, então, amá-la. Percebam, portanto, que não há nada de errado em apaixonar-se, aliás, quase todo relacionamento começa por essa via, mas em algum momento é preciso abrir mão dessa ilusão de completude para que, enfim, se possa enxergar o outro enquanto sujeito, para além de um objeto-espelho de si, e permitir o afloramento do amor.

Após o término do namoro, Tom ainda volta a ser frustrado em suas esperanças de reconciliação e passa por uma comovente luta na tentava de se haver com o vazio deixado pela perda da parte de si projetada na musa, bem como da ilusão de completude, por ela, proporcionada - e aqui cabe um adendo: Todo rompimento produz um vazio, pois, também no campo do amor, a quantidade de afeto investida no outro fica, momentaneamente, sem lugar até poder ser reinvestida no Ego e em outros objetos de afeição, o que dá origem a um processo de “luto pelo objeto de amor perdido” que, quando superado, promove a indiferença ou à reconfiguração da relação como amizade. Contudo, no primeiro caso, por ignorar completamente as causas que levaram à separação e sua própria parte nisso, o(a) apaixonado(a) tende a interpretar a postura do outro como abandono, podendo reagir com o ódio ou a culpa - um ódio dirigido, inconscientemente, a si mesmo como punição por um mal cometido. Notem, também, que tanto o ódio quanto o amor/paixão são sentimentos poderosos que mantém a conexão entre as partes, e que, portanto, podem estar a serviço de uma recusa em aceitar, de “fazer vista grossa” para crua realidade do rompimento, enquanto a indiferença ou a amizade, sim, representariam a possibilidade da verdadeira separação e superação das questões a dois.

Retornando à narrativa, Tom leva bastante tempo nesse processo, deixa a firma na qual trabalhava e resolve dar ouvidos ao seu desejo, investindo na Arquitetura e encontrando na carreira uma motivação para alem de Summer. Nesse momento, ele parece estar começando a relativizar sua noção idealizada de “felicidade verdadeira”, dando-se conta de que a maior parte de sua satisfação, enquanto sujeito, depende mais dele do que da ilusão de completude junto a um objeto de afeição, mas isso não chega a se concretizar: ele reencontra Summer e ainda parece vivenciar a partida dela como abandono, apesar de se mostrar mais forte em sua autoestima. E o resultado previsível de uma questão tamponada (varrida para debaixo do tapete ou não verdadeiramente superada) como a do protagonista é a repetição: o tal “dedo podre” ou o “acaso”, entidades a quem costumamos atribuir a responsabilidade pelas sucessivas más escolhas e fracassos amorosos; Tom, saindo de uma entrevista de emprego, conhece a jovem Autumn (Outono), zerando a contagem dos “500 dias” para um novo ciclo que, provavelmente, também o levará ao céu e ao inferno. 

Essa tendência à repetição é um mecanismo psíquico inconsciente através do qual tentamos buscar novas percepções sobre uma vivência que não conseguimos simbolizar, ou para a qual ainda faltam compreensões, de onde conclui-se que após ter vivido seus 500 dias de Verão - referência ao título em sua tradução literal - (com Summer), o personagem apaixonado viverá os 500 dias de Outono (com Autumn) e, quem sabe, 500 dias de Primavera e de Inverno antes que consiga entender sua parte nos fracassos de seus relacionamentos. Só então, ele poderá produzir uma nova escrita, saindo de sua sina melancólica para ver sua próxima companheira por quem ela é, sem atribuir-lhe a responsabilidade por sua felicidade ou completude, alcançando o patamar a que sua primeira musa pôde chegar: o amor, o estado de querer-ficar-com-apesar-de.


Referências:

BENTO, V. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade: considerações sobre o conceito de narcisismo em Freud (1905) e sobre a paixão amorosa tóxica à partir de Freud. Revista da ABP-APAL, São Paulo, v. 16, n. 4, p. 154-164, 1994a.

BENTO, V. “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância”: considerações sobre o narcisismo em Freud e sobre a paixão amorosa tóxica a partir de Freud. Temas, São Paulo, v. 24, n. 47, p. 94-113, 1994b.

BENTO, V. O presidente Schreber, um caso de paranoia: considerações sobre o narcisismo em Freud (1911) e sobre a paixão amorosa tóxica a partir de Freud. Informação Psiquiátrica, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, p. 27-35, 1995.

BENTO, V. Para uma semiologia psicanalítica das toxicomanias: adicções e paixões tóxicas no Freud pré-psicanalítico. Revista Mal-estar e Subjetividade, v. 7, n. 1, p. 89-121, 2007a.

BENTO, V. Introdução às Justificativas clínicas e teóricas da hipótese das paixões “tóxicas”. Estudos de psicologia, Campinas, v.27,n.1, p. 109-120, 2010

KLEIN, M. Estágios Iniciais do Conflito Edipiano e da Formação do Superego. A Psicanálise de Crianças, Imago, Rio de Janeiro, p.145-168, 1997

FREUD, S. Recordar, Repetir e Elaborar. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Imago, Rio de Janeiro, v.12 , p.163-171, 1914

FREUD, S. Além do Princípio do Prazer. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Imago, Rio de Janeiro, v.18 , p.17-75, 1920

FREUD, S. Sobre o Narcisismo: uma Introdução. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Imago, Rio de Janeiro, v.14 , p.81-108, 1923

FREUD, S. O Ego e o Id. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, Imago, Rio de Janeiro, v.19 , p.27-71, 1923

WINNICOTT, D.W. A capacidade para estar só. O ambiente e os Processos de Maturação: Estudos sobre a Teoria do Desenvolvimento Emocional, Artmed , Porto Alegre, p.31-37, 1958

WINNICOTT, D.W. Desenvolvimento Emocional Primitivo. Da Pediatria à Psicanálise, Imago, Rio de Janeiro, p.218-232, 1945

WINNICOTT, D.W. Psicoses e Cuidados Maternos. Da Pediatria à Psicanálise, Imago, Rio de Janeiro, p.218-232, 1952


WINNICOTT, D.W. Objetos Transacionais e fenômenos Transicionais. Da Pediatria à Psicanálise, Imago, Rio de Janeiro, p.218-232, 1951

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Recurso à ficção nº1 - Como explicar o fenômeno de Game of Thrones

Game of Thrones (ou Jogo dos Tronos) é uma série de televisão produzida e transmitida mundialmente pelo canal HBO, inspirada nos livros da coleção “Crônicas de gelo e fogo”, de George R. R. Martin, com seis temporadas já exibidas e outras duas ainda por vir. Trata-se de uma complexa e envolvente trama, com qualidade técnica, elenco e cenários dignos de Hollywood, que retrata à perfeição o contraste entre o luxo e a miséria, o papel central da fé, as guerras, alianças e as traições da turbulenta Idade Média, transpostos para um mundo fictício habitado por dragões e outras criaturas sobrenaturais. Entretanto, mesmo diante de tanto investimento e um enredo bem construído, nem os mais otimistas conseguiram prever o quanto essa obra de fantasia se destacaria das demais, tornando-se um fenômeno mundial de audiência e movimentando um lucrativo mercado de produtos oficiais e não-oficiais. Como explicar?

Primeiramente, convido-os a pensar um importante diferencial da série: o destino de seus personagens. Estamos acostumados ao herói clássico - aquele regido por um inabalável código de honra, dotado de grande coragem e altruísmo - ao anti-herói - aquele regido por um código moral “flexível” e de caráter nada virtuoso, que atinge os objetivos através de métodos questionáveis e ainda assim nos cativa por seu carisma - e ao vilão clássico - aquele que deverá encarnar a essência do mal e, portanto, será o contraponto absoluto ao herói. Contudo, na produção da HBO somos a todo tempo surpreendidos por heróis problemáticos - aqueles com boas intenções, mas que são assombrados por seus traumas e incertezas, por seus vícios e virtudes - e muitos personagens não-lineares - aqueles que começam a jornada como heróis clássicos e vão se tornando anti-heróis, ou vilões que vão se humanizando. Em outras palavras, Game of Thrones nos apresenta personagens mais realistas, com trajetórias de erros, acertos, degradações e redenções com as quais podemos nos identificar mais facilmente do que com os ideais representados pelo herói clássico ou pelo vilão.

Outra característica notável é a morte de protagonistas. Com um amplo leque de bons personagens, tanto o autor quanto os produtores não economizaram nas corajosas reviravoltas que, quase sempre, deixavam os expectadores órfãos de seus favoritos. Muitos disseram, por vezes, que deixariam de assistir à série, mas em poucos dias ali estavam, frente à TV, aguardando ansiosamente o início do episódio seguinte e, nesse contexto, surgiram brincadeiras como “é melhor não gostar mais de ‘fulano(a)’, senão ele(a) vai acabar morrendo também”. Esses gracejos costumam dar pistas importantes sobre o nosso funcionamento e, nesse caso específico, ajudam a tornar evidente a causalidade “se eu gostar dele(a), ele(a) irá morrer”, como se ao fã coubesse condenar por seu afeto ou salvar o(a) personagem por meio de sua indiferença para com ele(a). Em outras palavras, por meio da despretensiosa frase acabamos explicitando que, num nível inconsciente, tanto nos julgamos onipotentes, detentores de poder suficiente para fazê-los viver ou morrer, quanto temos registro da destrutividade que o nosso amor pode carregar. Além disso, a pessoa na qual esse mecanismo opera terá que se haver, inevitavelmente, com as mortes já ocorridas em consequência de seu apego, ou seja, com um sentimento inconsciente de culpa oriundo das “vidas” que tirou “sem querer”, além daquelas que, em sua onipotência, se sente capaz de ceifar. Isso abre caminho para uma tentativa de reparação por meio do afastamento, onde não é mais possível deixar envolver-se pelos personagens objetos de sua afeição, sob a pena de vê-los destruídos, com o objetivo último de atenuar a culpa e seguir acompanhando a série.

Em outros casos, contudo, as mortes de personagens queridos podem ser atribuídas à uma atitude sádica dos produtores ou do autor, resultando numa postura retaliatória, por parte dos fãs, que se prestam a externalizar seu “rompimento unilateral” com a série, tendo dois desdobramentos frequentes: (1) a culpa inconsciente por ter sido a figura ativa na “separação”, faz o sujeito voltar atrás, esvaziando a carga emocional de suas frustrações e exaltando as qualidades da obra audiovisual, o que, normalmente resulta numa “reconciliação”; e (2) após algumas poucas semanas “dando um gelo”, conclui-se que a punição alcançou seu objetivo e encaminha-se sua revogação, que, normalmente, implica assistir os episódios perdidos.

Percebam que seja no primeiro caso ou nos dois últimos, o sujeito sempre encontrará uma forma de não se separar da série em definitivo, muitas vezes, renunciando aos resquícios de seu descontentamento, salvo nos casos em que a angústia por ela gerada extrapolar a tolerância individual. Assim, na maior parte das vezes, Game of Thrones é bem sucedida em produzir nos seus espectadores os sentimentos de amor e ódio - uma sensação “agridoce”, como o autor costuma dizer - ambivalência característica dos relacionamentos amorosos, fundando e estreitando laços de modo a tornar difícil a separação.

Ainda podemos falar das abundantes cenas de sexo e de violência explícitas, que nos remetem aos primórdios pré-civilizatórios da raça humana: uma época em que ainda não havia barreiras aos impulsos amorosos ou agressivos e podíamos atuá-los livremente. Esse tempo pode estar distante, mas uma vez que nascemos não civilizados - como vimos no texto sobre a natureza humana - guardamos seus resquícios e com eles travamos batalhas homéricas a todo momento, na tentativa de impedi-los ou encontrar meios substitutivos para que se expressem. Assim, fica mais fácil entendermos como a visualização de cenas tão cruas pode capturar nossa atenção de maneira quase hipnótica, ainda que envolvam um grande mal-estar pela identificação com os personagens-vítima: também nos identificamos, mas inconscientemente, com o agressor em nosso sadismo reprimido, o que faz dessas cenas o meio perfeito para a realização de tais impulsos através da ficção, em substituição a atuá-los no dia a dia. 

Inclusive, na primeira temporada da série, as cenas do personagem Crasler sintetizam perfeitamente a alegoria descrita por Freud em Totem e Tabu (1913), retratando uma horda primitiva na qual um grande pai, a quem tudo era permitido, expulsava os filhos, obrigando-os lutar pela sobrevivência e a formarem suas próprias hordas, enquanto desposava as filhas, que gerariam suas novas esposas e concorrentes exilados. Na série, o destino dos filhos homens é outro, mas na história freudiana eles, um dia, retornam e se unem para matar o pai tirânico, e, ao fazê-lo, cada um deles busca ocupar seu lugar, instaurando, como consequência, a barbárie. A carnificina só encontra um fim quando se percebe que era a lei, representada pelo pai agora morto, que os impedia de matarem uns aos outros e tomarem suas filhas e irmãs. Então, culpados pela morte desse pai admirado/odiado, os filhos e filhas erguem um totem para representá-lo e, assim, sempre lembrarem da importante barreira ao gozo desenfreado, instituindo o tabu do incesto, existente em todas as civilizações humanas. 

Alguns poderiam tentar refutar essa ultima colocação fazendo menção às tribos em que, ainda hoje, a iniciação sexual dos mais jovens se dá pelos mais velhos da mesma família, mas, mesmo nesses casos, o sentido ritual/religioso que rege tal costume remonta a lógica totêmica, posto que serve de lembrete vivo de que aquela prática, fora daquele contexto, é tão condenável que, em algumas culturas, pode até ser punível com a morte. Então, se pudermos dizer que o totem é o marco fundador da civilização, torna-se clara a razão pela qual Crasler era chamado de selvagem na série, mesmo tendo nascido ao sul da muralha; e esse não é, sequer, o caso de incesto mais relevante da trama. Isso posto, se relembrarmos o, já citado, artigo Reflexões em tempos de guerra e morte (1915), temos que “Uma proibição tão poderosa só pode ser dirigida contra um impulso igualmente poderoso. (Freud, 1915, p.306), o que nos leva a entender que há um forte desejo por trás do tabu, fundamento básico da teoria do Complexo de Édipo e outra razão pela qual Game of Thrones atrai nossa atenção tão facilmente. 

Ainda poderíamos falar dos Spoilers - que encontram um grande número de adeptos por tenderem a atenuar os sustos proporcionados pelas reviravoltas da série - da força das personagens femininas - fugindo ao padrão clássico da donzela indefesa e ascendendo ao protagonismo - do idioma dothraki (criado para a série) e das diferentes culturas representadas - que nos fazem sentir como estrangeiros numa terra exótica - além das religiões e histórias de fundo de alta complexidade - que compõem essa aura de plausibilidade dos acontecimentos e auxiliam na suspensão de juízo frente às premissas fantásticas da série. Entretanto, esmiuçar todos esses pontos deixaria o texto ainda maior, então proponho ficarmos por aqui, deixando o seguinte questionamento: o que te faz assistir ou não Game of Thrones, e o que isso revela sobre você?

Referências:

FREUD, S. (1913). Totem e Tabu. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol XIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006
FREUD, S. (1915) Reflexões em tempos de guerra e morte. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006



segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Convite à reflexão nº3 - Sujeito ou tecnologia: de quem é a culpa?

Terminada a “trilogia” de textos mais densos, proponho retornarmos à relação entre o ser humano e a tecnologia, pegando carona nos recentes bloqueios judiciais ao “WhatsApp” e na febre internacional do “Pokemon Go” para pensarmos o que, de fato, está em jogo quando culpamos os dispositivos eletrônicos pelos males do modo de vida contemporâneo. 

Começando pelo aplicativo de mensagens instantâneas, procurem se lembrar do quanto nos sentimos prejudicados à ocasião da sentença que ocasionou a breve suspensão do serviço em todo o território nacional. É verdade que com possibilidade de nos comunicarmos sem custo, de forma objetiva e em tempo real, tanto os relacionamentos quanto o mundo do trabalho sofreram importantes transformações, mas, ainda assim, seria de se esperar que voltar a usar mensagens SMS, e-mails, fazer ligações e olhar nos olhos por um prazo inferior à 24 horas não fosse representar um baque tão grande assim. Entretanto, muitos de nós ficaram desorientados, irritados e ansiosos, e acabaram culpando o juiz responsável pelo procedimento legal, ao invés da empresa que descumprira a determinação de colaborar com investigações criminais em andamento. Esses sintomas, característicos da abstinência de substâncias, e essa inversão conveniente de valores nos dizem muito sobre o quanto nos tornamos dependentes desse tipo de tecnologia, tanto que alguns, incapazes de aceitar a privação, investiram seu tempo em tutoriais que ensinavam formas de burlar o bloqueio ou optaram por migrar para concorrentes como o “Telegram” e o “Messenger”.

Alguns até poderiam argumentar que a decisão judicial fora arbitraria, alegando que o aplicativo apenas cumpriu o compromisso de preservar o direito à privacidade de seus clientes, mas se concordarmos com essa linha de pensamento, por uma questão de coerência também teremos de nos posicionar em contrário às quebras dos sigilos bancários e telefônicos de investigados por corrupção e outros casos semelhantes, afinal, também nessas situações a privacidade é posta em cheque. Supondo, portanto, que a privacidade fosse um direito inviolável, teríamos que nos acostumar à investigações ainda mais ineficientes e ineficazes, e a uma impunidade muitas vezes maior do que a de hoje, que já nos gera tanta revolta. Nem mesmo a liberdade de expressão, um dos direitos mais importantes garantidos na constituição de 1988, é absoluta, encontrando barreiras na própria lei quando esta nomeia os crimes de racismo, injúria, assédio moral e tantos outros; o próprio direito à vida pode ser posto de lado ante uma situação de guerra externa e, por muito menos, em países que possuam pena de morte. Feitas tais considerações, podemos concluir que nenhum direito deve ser absoluto quando se vive em sociedade, uma vez que o direito de um, eventualmente, acabará balizado por um dever para com o outro.

Muitos poderiam, também, defender que não há nada de errado em nos adaptarmos às facilidades e demandas da Era da Informação - e não há mesmo - mas devemos sempre estar atentos aos casos em que nos utilizamos da tecnologia para substituir o contato social significativo. Podemos citar, como exemplo, membros de uma família que, dentro de uma mesma casa, se comunicam por meio de mensagens e se isolam em seus computadores pessoais, cada um no seu canto. Podemos falar de jovens que, numa mesma mesa de bar, se refugiam em conversas virtuais, cada qual em seu smartphone, com pessoas ou grupos não-presentes. Também podemos mencionar os casos mais graves onde, diante da oportunidade de resolver tanta coisa ou “encontrar” tantas pessoas sem sair de casa, o sujeito acaba por confinar-se à sua residência, às vezes ao seu quarto. Diante desses cenários, podemos pensar que aplicativos como o “WhatsApp”, ao mesmo tempo que  possibilitam manter contato com quem está longe, nos permitem o isolamento por meio da atenuação da solidão, ou seja, diante da ilusão de estarmos constantemente conectados a inúmeras pessoas, podemos prescindir de todas elas na realidade. Assim, se aceitarmos essa premissa, torna-se mais fácil entender a razão de certas reações ao bloqueio judicial do serviço de mensagens, afinal, na ausência dessa ilusão de conexão, somos obrigados a lidar com a solidão e com o distanciamento que nós mesmos criamos em relação a nossos pares.

Por outro lado, nem sempre a mediação das relações por meio da tecnologia é algo negativo. Vejamos o exemplo do recém lançado “Pokémon Go”, um jogo de realidade aumentada para smartphone onde você precisa caminhar pelas ruas e parques da sua cidade, utilizando o GPS do aparelho para encontrar e capturar os monstrinhos que aparecem, tendo a oportunidade de interagir virtualmente com grafítis e outros marcos da paisagem real para adquirir certos itens necessários ao progresso na campanha. Trata-se de um convite à abandonar o sedentarismo, à conhecer pessoas e a perceber as paisagens que nos cercam, um aplicativo que fora capaz de tirar de casa um menino autista e de fazer as crianças de um hospital infantil caminharem e se exercitarem durante a internação. Contudo, também multiplicam-se as notícias que tratam da conduta perigosa de alguns usuários, causada pela distração ao caminhar ou dirigir com os olhos na tela, ou mesmo de ações arriscadas como a invasão de propriedades privadas e natação em rios com forte correnteza à procura de Pokémons mais raros.

Perceba que seja no “WhatsApp”, no “Pokémon Go” ou em qualquer outro aplicativo ou software, sempre poderemos observar pessoas que utilizam a tecnologia sem prescindir dos relacionamentos e da convivência, sem se expor a riscos e aproveitando as potencialidades dos dispositivos, enquanto outros se valem dos mesmos em prol do isolamento ou de uma exposição exagerada ao perigo. Assim, podemos concluir que há algo, no sujeito, capaz de direcionar esse uso: uma escolha, ainda que inconsciente, apoiada num desejo, nem sempre, conhecido por ele. Em outras palavras, um sujeito pode estar completamente alheio às razões pelas quais se relaciona com a tecnologia de modo disfuncional, mas o simples fato de fazê-lo pode fornecer pistas importantes sobre como ele mesmo ou terceiros - familiares, amigos ou cônjuges - podem ajudá-lo.

Privar um jovem de seu aparelho celular ou de seu computador, por exemplo, embora possam parecer medidas adequadas às circunstâncias, provavelmente só lhe trarão a angústia do isolamento e o ódio contra quem lhe impôs tais privações, afinal, grande parte das relações sociais atualmente acontecem através de mensagens instantâneas e em ambientes virtuais. Por outro lado, se, ao invés da crítica e da punição vier o interesse pela forma como o sujeito se relaciona com a tecnologia, ou seja, uma aproximação por curiosidade e não por estranhamento, poder-se-á criar uma oportunidade de alcançá-lo e fazer com ele um vínculo reforçado capaz de, aos poucos, puxá-lo de seu posicionamento autodestrutivo para um novo, menos danoso. É certo, no entanto, que, muitas vezes, as angústias, mágoas e rancores, de parte a parte, entrarão em cena como elemento crítico, reforçando as resistências e impedindo a aproximação desejada. Nesses casos, é importante que se procure ajuda profissional: alguém que será capaz de posicionar-se num polo neutro e, portanto, de minimizar essas variáveis e manejar os conflitos do sujeito, fornecendo ao paciente os meios internos de promover a própria saúde.

Todavia, tanto o movimento de ajudar quanto o de nos permitir sermos ajudados dependem da compreensão de que o problema está na escolha do indivíduo e não na plataforma virtual, o que pode se provar bastante difícil. Afinal, ao admitirmos que uma parte de nós deseja o isolamento, o desafio à morte através da submissão ao perigo real ou o exercício do controle e da posse sobre os outros, estaremos recebendo um forte golpe contra nosso ideal narcísico ou, ainda, estaremos diante da possibilidade de deixarmos o lugar com o qual estamos familiarizados por um sobre o qual nada sabemos. Além disso, também pode se mostrar complicado o reconhecimento de que nossos entes queridos vivenciam tais questões, posto que isso também implicaria abrirmos mão da imagem idealizada que temos deles. 

Diante da eventual impossibilidade de situarmos o problema no sujeito, nos restará localizar o mal-estar daí proveniente nos dispositivos eletrônicos, um “bode expiatório” capaz de sobreviver aos ataques e recriminações morais e, ao mesmo tempo, incapaz de retrucar ou revidar.

Referências:

Matéria sobre menino autista: 

Hospital Infantil utiliza Pokémon Go para tirar crianças da cama: