terça-feira, 2 de maio de 2017

Recurso à ficção nº3 - Dos 13 porquês aos 50 desafios.

Lançada pela Netflix no final de Março de 2017, “13 reasons why” (ou “os 13 porquês”) vem mobilizando as redes sociais pela maneira como abordou temas densos como o suicídio, o bullying e a violência sexual. Aclamada por grande parte do público, a série também provocou revolta naqueles que nela viram uma tentativa de romantizar o sofrimento psíquico e de sugerir que pôr um fim à própria vida seria uma alternativa aceitável à angústia prolongada, ou uma forma eficaz de “mandar um recado” a supostos algozes. Nesse sentido, tendo a compartilhar da preocupação que orbita o sucesso da obra, exatamente por pensar que muitos jovens têm na ficção uma ferramenta que os auxilia na elaboração (digestão/assimilação) das experiências adolescentes, para as quais, este caso específico, parece fornecer referências eticamente questionáveis. Por outro lado, no entanto, desde o lançamento da série, o Centro de Valorização da Vida (CVV), que oferece atendimento psicológico gratuito 24h por dia via internet, registrou um aumento de 445% nos pedidos de ajuda recebidos em seus canais. Segundo matéria da Exame, uma parte considerável dos novos usuários do serviço disse se identificar com Hannah (personagem suicida), e buscavam suporte para terem um destino diferente do dela. Levando isso em consideração, ao invés de recomendar que a série não seja assistida, como muitos profissionais da saúde mental têm feito, prefiro propor que seja vista, pensada e falada em família, de modo a fortalecer os vínculos entre os membros e oferecer continente aos afetos que venham à tona. Da minha parte, tentarei chamar atenção para alguns aspectos relevantes para orientar essa discussão, aproveitando para comentar o recente e preocupante “jogo da baleia azul”. O texto abaixo contém spoilers da série; boa leitura!

A série nos apresenta Clay Jensen (17 anos), um aluno introvertido do ensino médio, em uma postura reflexiva pelos corredores da escola em que estuda, de onde observava com estranhamento a (quase) inalterada rotina dos colegas, tão pouco tempo depois do suicídio de uma amiga que também era seu interesse amoroso. Naquele instante, ele avista duas meninas tirando uma “selfie” em frente às homenagens coladas ao escaninho de Hannah, foto que logo é postada numa rede social com a hashtag “nunca esqueceremos”, dizeres contrastantes com a aparente indiferença da dupla. Esta primeira cena pode ser entendida como uma crítica tanto à forma como, hoje, tendemos a naturalizar acontecimentos significativos quanto à necessidade de fingirmos nos importar com algo, visando exclusivamente a aprovação de um grupo ou comunidade; ambos, pontos a serem melhor explorados num futuro trabalho.

Numa próxima cena, Clay chega em casa e encontra um pacote endereçado a ele, contendo um mapa e sete fitas-cassete com mensagens póstumas de Hannah, nas quais ela narra, em tom de ironia levemente sádico, os motivos que a levaram a tirar a própria vida. Incrédulo, diante do toca-fitas, o rapaz escuta, na voz da própria menina, a seguinte introdução: “Oi, é a Hannah, Hannah Baker. (…) Pegue um lanche, acomode-se, porque eu estou prestes a te contar a história da minha vida. Mais especificamente, como minha vida terminou. E se você está ouvindo esta fita, você é um dos porquês”. Como consequência, Clay entra num estado transitório de ansiedade e paranóia, se esforçando para lembrar de qualquer situação que justificasse a alegação da moça e temendo ser perseguido por quem quer que descobrisse o que ele, supostamente, teria feito à sua colega. Mais tarde, de posse do Walkman furtado de um amigo, o rapaz segue ouvindo à gravação, que diz: “as regras aqui são muito simples, são apenas duas: número um, você ouve; número dois, você passa adiante. Espero que nenhuma seja fácil. Não é para ser fácil, ou eu teria enviado um MP3 por e-mail. Quando tiver terminado de assistir aos 13 lados, pois há 13 lados para cada história, rebobine as fitas, coloque-as na caixa e passe-a para a próxima pessoa. Ah! e a caixa de fitas deve ter um mapa. Eu deverei mencionar diversos locais de nossa adorada cidade; não posso forçá-lo a visitá-los, mas se quiser uma percepção maior, siga as estrelas, ou, sei lá, jogue o mapa fora e eu nunca saberei, ou… será que vou? 

Lendo atentamente às passagens transcritas, primeiras de muitas com mesmo teor, podemos perceber que o objetivo principal das fitas não era veicular um pedido de socorro ou expressar as angústias de Hannah, mas colocar em curso uma elaborada vingança contra aqueles que ela considerava responsáveis por seu suicídio, cujo resultado ela própria não testemunharia. Além disso, as fitas possuem um lado para cada um dos 13 “culpados”, ou seja, nenhum dos “porquês” é atribuído à própria suicida que, em última análise, é quem toma a decisão e comete o ato de dar fim à própria vida. Essas compreensões tornam possível reconhecermos a incapacidade de Hanna se implicar em seu próprio sofrimento ou nas consequências dos seus atos, fornecendo a base para postularmos que Hannah apresenta uma personalidade excessivamente projetiva, ou seja, que como principal mecanismo de defesa, inconscientemente expulsa os aspectos “maus” (persecutórios) de seu mundo interno e os lança sobre terceiros, de onde esses aspectos retornam fundidos a seus hospedeiros, convertendo-os em perseguidores. Dito de outra forma, em diversos momentos da narrativa, a enorme agressividade da protagonista (expressa diretamente ou em forma de ironia) é projetada sobre outros personagens, que passam a ser percebidos por ela como hostis e mal-intencionados. Alex, por exemplo, que tornou-se um “porquê” ao divulgar entre colegas uma lista, onde ranqueava as meninas de sua escola de acordo com seus “atributos” (lábios, busto, etc.), foi percebido por Hannah como hostil por sua menção a ela enquanto dona da “melhor bunda”, enquanto a garota relacionada por seus belos lábios se mostrava orgulhosa e envaidecida. Vale, também, lembrar que o rapaz em questão já figurava como um alvo provável para as projeções de Hanna, uma vez que, na percepção dela, ele fora responsável tanto pela dissolução de seu grupo de amigos quanto pelo fim da amizade com Jéssica.

Não se trata, obviamente, de diminuir o peso ou relativizar as experiências traumáticas vividas pela personagem, entre as quais estão dois estupros cometidos por Bryce: um sofrido e um presenciado, qualquer um dos quais com potencial para lançar uma pessoa comum numa depressão grave e de difícil recuperação. Também podemos falar das ações de Marcus, que deixaram Hannah numa situação de grande desamparo ao transformar um encontro romântico numa situação invasiva e objetificante, quando o rapaz tomou certas liberdades com a garota para impressionar os amigos; poderíamos falar de Justin, que permitiu que os colegas vissem e compartilhassem uma foto constrangedora da menina em seu celular; e também de Tyler, que acompanhou, invadiu a privacidade e tirou uma foto comprometedora de Hannah com uma amiga, vindo a distribuí-la aos alunos da escola por vingança. Todos a frustraram ou violentaram de alguma forma, contudo, em sua particularidade projetiva, Hannah já havia, àquela altura, designado todos os seus amigos como perseguidores e não tinha mais a quem recorrer, senão ao conselheiro escolar, que também acaba virando um “porquê” após falhar em demovê-la de sua intenção suicida.

Por sua vez, pela forma como a série apresenta, a importância dada a esses casos é a mesma conferida às ações de Courtney que, por medo de que alguma cobrança recaísse sobre seus pais gays, recusa-se a assumir sua própria homossexualidade e o desejo por Hannah, espalhando uma mentira sobre a mesma para não ser associada a ela; Sheri, que acidentalmente derrubou uma placa de trânsito e, por medo, fugiu do local deixando a amiga para trás, onde mais tarde ocorreria um acidente fatal; Ryan, que furtou e publicou um poema escrito pela protagonista; Zach, que tentou se aproximar da moça num momento inoportuno e por ela foi magoado, vindo a cometer alguns equívocos na sequência; e o “bom moço” Clay que, confundido com um agressor numa cena de intimidade entre os dois, é repelido pela menina e acata o que lhe é demandado: sair de perto e deixar a festa quando, a despeito do que disse, Hannah necessitava que ele houvesse ficado. Este último, aliás, foi o único momento em que a protagonista esteve perto de reconhecer um erro próprio, mas, incapaz de fazê-lo, culpou o rapaz.

Hannah é, sem dúvida, uma personagem em intenso sofrimento psíquico, somente sendo capaz de vincular-se pela via da agressão, como fica claro no início da amizade com Jéssica e nos flashbacks com Clay, funcionamento cuja consequência natural é o posterior ataque aos vínculos construídos, que se prestam a testar tanto a capacidade de sobrevivência dos mesmos quanto a destrutividade da própria Hannah. Como resultado, se os amigos se afastam, a menina entende que seus vínculos são frágeis e pouco confiáveis, e tem a comprovação de sua própria destrutividade, gerando um aumento do caos em seu mundo interno que, por sua vez, torna-se insuportável e intensifica o mecanismo projetivo: um ciclo vicioso. Ela é, sobretudo, vítima de si mesma e, por ser incapaz de reconhecer sua participação na própria jornada trágica, vê a todos como entidades hostis e se fecha a qualquer possibilidade de obtenção de ajuda, tanto dos amigos quanto de seus pais, os quais, apesar dos problemas cotidianos, se mostram até receptivos e disponíveis a uma aproximação da filha.

Como poderíamos ajudar alguém na situação de Hannah? Não há uma “receita de bolo”, com adaptações sendo necessárias caso a caso, mas, primordialmente, precisamos ser capazes de nos aproximar e sobreviver a seus ataques. Fazendo isso, teremos tanto a possibilidade de demonstrar a confiabilidade do vínculo estabelecido entre as partes quanto de mostramos, à pessoa em questão, que sua destrutividade não é absoluta como se fizera parecer na onipotência inconsciente. Assim, podemos gradualmente aliviar o caráter persecutório do mundo interno e abrir o canal para o diálogo com o exterior, até mesmo para que ocorra a aceitação de uma oferta de ajuda, como um acompanhamento profissional. Essa estratégia pode ajudar, inclusive, na prevenção de casos como os relacionados ao “jogo da baleia azul”, onde são propostos desafios que incluem auto-mutilações e culminam com o suicídio do participante.

Este último, nada mais é que um sistema de desafios perverso, originado na Rússia e com baixíssimas possibilidades de virar moda no Brasil, mas que surgiu como um perigo real devido à ampla divulgação da mídia tradicional em todo o ocidente. Este “jogo” exige atenção especial por endereçar desafios a jovens já fragilizados, numa idade em que estão, particularmente, sucetíveis a seguirem tendências em prol de um sentimento de pertença, tão necessário à construção da identidade do adolescente. Portanto, aproxime-se de seus filhos e amigos, observe e mostre-se disponível a conversar; aposte na força do vínculo entre vocês. A maior ameaça, como defendi neste texto, não está fora, mas dentro do jovem, onde também se encontra a solução. 

Notas de Rodapé:

  1. De forma simples, Bullying é uma palavra oriunda do inglês, frequentemente empregada para designar a prática prolongada do assédio moral com ameaças ou efetiva prática de violência física contra a vítima. Não se trata das provocações consideradas “normais” entre os jovens, mas de um comportamento sádico vindo de um indivíduo ou de um grupo que obtém prazer em produzir sofrimento num sujeito mais frágil, contando com sua pouca ou nenhuma probabilidade de reagir.
  2. Spoiler é, na prática, falar sobre aspectos relevantes de uma história, com potencial para estragar a experiência de quem ainda não leu/assistiu. É contar o final da história, basicamente.
  3. Selfie é uma apropriação abreviada do termo “self portrait”, do inglês, que pode ser traduzido como “auto-retrato”. Ganhou popularidade com o advento das câmeras fotográficas digitais, que permitiam tirar quantas fotos coubessem na memória do dispositivo, deletar as que não agradassem e verificar o enquadramento antes do clique, fenômeno que se intensificou com a inclusão das câmeras nos celulares.  
  4. Também de forma símples, hashtags são palavras ou frases iniciadas pelo caractere “#” com o objetivo de etiquetar uma publicação na internet. Costumam ser utilizadas para expressar um posicionamento pessoal frente a uma questão ou externar sentimentos de modo padronizado, permitindo o agrupamento e localização de postagens marcadas com os mesmos dizeres.
  5. No caso de uma narrativa, flashbacks são retornos a cenas ocorridas no passado, levando em conta a passagem do tempo na obra literária ou audiovisual.

Referências:



KLEIN, M. Amor, culpa e reparação e outros trabalhos (1921-1945) - Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1996.

PICHON-RIVIÈRE, E. Teoria do vínculo - 7ª edição - São Paulo: Martins Fontes, 2007.

terça-feira, 14 de março de 2017

Convite à reflexão nº4 - Medicalização da infância: a quem o “transtorno” causa transtorno?

Nos últimos anos, venho acompanhando a ampliação do debate sobre a medicalização da infância no meio acadêmico, que, estranhamente, ainda conta com quase nenhuma participação popular ou divulgação da mídia; por que será? Eu enxergo 3 hipóteses mais óbvias: (1) a indústria farmacêutica, por meio dos anúncios de seus “produtos”, é responsável por uma importante parcela das receitas dos veículos de comunicação, o que pode inibi-los na divulgação de uma questão tão sensível; (2) entre os informados, alguns pais, esgotados pelas exigências do modo de vida contemporâneo e preocupados com seus filhos, parecem preferir um diagnóstico que lhes forneça explicações e aponte para um remédio milagroso, capaz de resolver o problema de forma simples e indolor; e (3) dos profissionais da área de saúde mental, alguns não se importam, outros acreditam nos diagnósticos, há aqueles que se contentam com um debate intelectualizado, pouco inclusivo e cheio de termos técnicos, e os poucos que, de fato, buscam dar visibilidade à questão usando uma linguagem acessível. Hoje eu tentarei entrar para esse último grupo, propondo uma reflexão sobre a nossa conivência, ativa ou passiva, com a “patologização” de comportamentos típicos da infância.

Esse debate, pouco tempo atrás, parecia uma disputa por pacientes entre médicos e psicólogos, onde os primeiros se posicionavam, em geral, favoráveis à medicalização e os segundos, em número considerável, desfavoráveis. Contrários à tendência, contudo, também havia psicólogos entusiastas dos diagnósticos, ansiosos para integrarem o lado reconhecidamente científico da disputa, enquanto alguns médicos, do alto de seu saber quase inquestionável, se deparavam com imprecisões inquietantes e passavam a flertar com o outro grupo. Dentre esses últimos, destaco o psiquiatra e psicanalista brasileiro Rossano Cabral Lima, que critica consistentemente o absurdo aumento do número de diagnósticos de “Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade” (TDA/H) e a consequente explosão do consumo de Ritalina, sobretudo por crianças muito novas.

Segundo ele, o termo medicalização “diz respeito a um processo no qual uma série de comportamentos pessoais, individuais, coletivos/sociais, que não eram descritos com vocabulário médico, não eram entendidos como patologias, não eram passíveis de tratamento/intervenções médicas, passam, então, a sê-lo”(Cabral Lima, Link nº2, 11:49). Não se trata, é evidente, de algo necessariamente bom ou ruim - é até natural do ponto de vista do avanço da ciência médica - mas precisamos ter cuidado ao analisar o assunto, principalmente no tocante às crianças, as quais, por não poderem se manifestar sobre suas próprias questões, consistem num grupo bastante vulnerável. Além disso, um novo diagnóstico, por mais impreciso e irresponsável que seja, pode ter um efeito calmante sobre os pais, categorizando os sintomas dos filhos e conferindo-lhes um “suposto saber” a respeito daquilo que não controlam e lhes causa transtorno. Sobre isso, Cabral Lima acrescenta:

O problema é que, vocês já devem ter visto os critérios diagnósticos para “Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade”, vários de nós e das nossas crianças vão se enquadrar em vários deles ou, pelo menos, em algum deles. Então, esse diagnóstico acabou se transformando, de novo, num grande guarda-chuva. Quem diz que toda hiperatividade, desatenção e impulsividade é sinal de TDA/H? Esses comportamentos podem aparecer como sinal de outros quadros psicopatológicos: crianças ansiosas ou deprimidas podem manifestar esses quadros, com alguns desses comportamentos; crianças com questões outras, que não passam por transtornos mentais, reagindo a situações circunstanciais da escola ou de casa, também podem apresentar esse tipo de questão. A gente não conta com nenhum critério para distinguir uma coisa da outra, né? Essa é a grande dificuldade, ou seja, na dúvida, todas as crianças, apresentando esse tipo de comportamento, acabam sendo candidatas ao diagnóstico e à medicação.” (Cabral Lima, Link nº2, 34:00)

O TDA/H, contudo, não é o único diagnóstico problemático que pressupõe um acompanhamento medicamentoso, que, vale dizer, conta com inúmeros efeitos colaterais que, muitas vezes, não valem o benefício obtido. Nesse mesmo hall, poderíamos falar do TOD (Transtorno Opositivo Desafiador), o qual se presta a patologizar o comportamento “rebelde” de algumas crianças - como o próprio nome sugere -, do próprio Autismo (ou Transtornos de Espectro Autístico), que inclui tanto os autistas (de fato) quanto crianças com pequenas inibições sociais e dificuldades em perceber e expressar emoções, do Transtorno Bipolar na infância, o qual rotula crianças de humor mais explosivo, agressivo ou irritável e, entre muitos outros, o novíssimo TDDH (Transtorno Disruptivo da Desregulação do Humor), que categoriza a “birra” nos conceituados manuais de psiquiatria. As margens entre esses diagnósticos são tão imprecisas, que grande parte das crianças que seriam diagnosticadas com um, também o seriam com outros, o que gera aberrações como os super combos diagnósticos, em que um mesmo indivíduo recebe, por vezes, de dois a quatro dessas rotulações de uma vez.

Nesse sentido, vale a pena relembrarmos alguns trechos do que disse Allen Francis, médico emérito da Universidade de Duke e responsável direto, durante anos, pela equipe que publicou as últimas edições da “Bíblia da Psicopatologia”, o DSM, em entrevista concedida ao jornal “El País”, em Setembro de 2014. Respondendo à uma pergunta sobre o “mea culpa” em sua última publicação e às críticas feitas, por ele, aos colegas que desenvolveram o DSM-V, Allen declara:

Fomos muito conservadores e só introduzimos [no DSM-IV] dois dos 94 novos transtornos mentais sugeridos. Ao acabar, nos felicitamos, convencidos de que tínhamos feito um bom trabalho. Mas o DSM-IV acabou sendo um dique frágil demais para frear o impulso agressivo e diabolicamente ardiloso das empresas farmacêuticas no sentido de introduzir novas entidades patológicas. Não soubemos nos antecipar ao poder dos laboratórios de fazer médicos, pais e pacientes acreditarem que o transtorno psiquiátrico é algo muito comum e de fácil solução. O resultado foi uma inflação diagnóstica que causa muito dano, especialmente na psiquiatria infantil. Agora, a ampliação de síndromes e patologias no DSM-V vai transformar a atual inflação diagnóstica em hiperinflação”. (Francis, Allen. Link 1)

Raciocínio ao qual, após ser perguntado sobre se agora seríamos, portanto, todos doentes mentais, ele acrescenta: 

Algo assim. Há seis anos, encontrei amigos e colegas que tinham participado da última revisão e os vi tão entusiasmados que não pude senão recorrer à ironia: vocês ampliaram tanto a lista de patologias, eu disse a eles, que eu mesmo me reconheço em muitos desses transtornos. Com frequência me esqueço das coisas, de modo que certamente tenho uma demência em estágio preliminar; de vez em quando como muito, então provavelmente tenho a síndrome do comedor compulsivo; e, como quando minha mulher morreu a tristeza durou mais de uma semana e ainda me dói, devo ter caído em uma depressão. É absurdo. Criamos um sistema de diagnóstico que transforma problemas cotidianos e normais da vida em transtornos mentais”.(Francis, Allen. Link 1)

Uma consequência complicada desse fenômeno é que o médico que não diagnostica conforme o esperado e, ao invés disso, sugere uma terapia ou procura entender o que estaria por trás dos tais comportamentos “desajustados”, tende a ser visto pelos pais, professores e outros médicos como incompetente, afinal, teria falhado na identificação do problema. Pensando nisso, lhes coloco o seguinte questionamento: por que insistimos nesta noção do “quanto mais, melhor” no campo da psicopatologia infantil, quando o esperado seria encontrar a lógica contrária, o “quanto menos, melhor”? Se o que queremos é que nossos filhos tenham saúde, ou seja, que não tenham diagnósticos psiquiátricos, por que nos apressamos em condenar os médicos que não os distribuem tão facilmente? Uma resposta possível seria supor que existe, no imaginário das pessoas, a certeza de uma disfunção socialmente injustificável na criança.

Se pudermos aceitar essa hipótese, então qual seria o fundamento para esse raciocínio? De onde concluímos que o meio, onde a criança está inserida, de nada contribui para seu comportamento disfuncional? Arrisco-me a dizer que a origem dessa lógica é defensiva. Explico: se eu reconheço que meu filho tem um problema e determino que a fonte está em alguma alteração exclusivamente fisiológica, isso me isenta de qualquer responsabilidade tanto pelo desajuste quanto pelos cuidados, os quais posso delegar totalmente ao médico, a quem caberá receitar um remédio milagroso e resolver o problema. Nesse sentido, em termos econômico-narcísicos, podemos dizer que é mais tolerável aceitar que meu filho tenha um sintoma pelo qual não sou responsável e cuja cura não depende de mim a, além de reconhecê-lo, perceber que eu talvez faça parte do problema e que precisarei realizar ajustes para auxiliar em sua remissão.

Dito isso, é preciso fazer uma importante ressalva: Não se trata de culpabilizar os pais. Pelo contrário, eles são os maiores aliados da criança em sua recuperação, uma vez que, excluídas às moléstias verdadeiramente oriundas más-formações, falhas genéticas ou antígenos (vírus, bactérias, etc.), os sintomas não se referem à um ou dois indivíduos apenas, mas à toda a família, podendo se estender à outros núcleos de convívio social. Por ainda contar com poucos recursos psíquicos e mecanismos de defesa rudimentares, as crianças se tornam especialmente vulneráveis aos excessos e ausências do meio, os quais o psicólogo, algumas vezes em parceria com o psiquiatra, deverá identificar e traduzir para a família de modo a implicar todos os membros na busca por um equilíbrio relacional mais funcional.

Finalmente, depois de tudo que expus aqui, pergunto-lhes: de quem é o transtorno? Da criança, muitas vezes objeto de diagnósticos imprecisos e questionáveis, expressando um sintoma oriundo, muitas vezes, de forças externas com as quais ainda não consegue lidar, ou seria dos pais, que além de terem suas próprias questões existenciais, responsabilidades e preocupações, precisam lidar com um filho inquieto, ou dos profissionais de saúde, que após elevarem a saúde ao estatuto de doença, já não conseguem mais distinguir uma da outra? Pensem nisso.


Referências:

American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders Ed 4(DSM-IV). Washington DC, American Psychiatric Association 1994.

LIMA, R. C. Somos todos desatentos?: O TDA/H e a Construcão de Bioidentidades, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005