segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Recurso à ficção nº1 - Como explicar o fenômeno de Game of Thrones

Game of Thrones (ou Jogo dos Tronos) é uma série de televisão produzida e transmitida mundialmente pelo canal HBO, inspirada nos livros da coleção “Crônicas de gelo e fogo”, de George R. R. Martin, com seis temporadas já exibidas e outras duas ainda por vir. Trata-se de uma complexa e envolvente trama, com qualidade técnica, elenco e cenários dignos de Hollywood, que retrata à perfeição o contraste entre o luxo e a miséria, o papel central da fé, as guerras, alianças e as traições da turbulenta Idade Média, transpostos para um mundo fictício habitado por dragões e outras criaturas sobrenaturais. Entretanto, mesmo diante de tanto investimento e um enredo bem construído, nem os mais otimistas conseguiram prever o quanto essa obra de fantasia se destacaria das demais, tornando-se um fenômeno mundial de audiência e movimentando um lucrativo mercado de produtos oficiais e não-oficiais. Como explicar?

Primeiramente, convido-os a pensar um importante diferencial da série: o destino de seus personagens. Estamos acostumados ao herói clássico - aquele regido por um inabalável código de honra, dotado de grande coragem e altruísmo - ao anti-herói - aquele regido por um código moral “flexível” e de caráter nada virtuoso, que atinge os objetivos através de métodos questionáveis e ainda assim nos cativa por seu carisma - e ao vilão clássico - aquele que deverá encarnar a essência do mal e, portanto, será o contraponto absoluto ao herói. Contudo, na produção da HBO somos a todo tempo surpreendidos por heróis problemáticos - aqueles com boas intenções, mas que são assombrados por seus traumas e incertezas, por seus vícios e virtudes - e muitos personagens não-lineares - aqueles que começam a jornada como heróis clássicos e vão se tornando anti-heróis, ou vilões que vão se humanizando. Em outras palavras, Game of Thrones nos apresenta personagens mais realistas, com trajetórias de erros, acertos, degradações e redenções com as quais podemos nos identificar mais facilmente do que com os ideais representados pelo herói clássico ou pelo vilão.

Outra característica notável é a morte de protagonistas. Com um amplo leque de bons personagens, tanto o autor quanto os produtores não economizaram nas corajosas reviravoltas que, quase sempre, deixavam os expectadores órfãos de seus favoritos. Muitos disseram, por vezes, que deixariam de assistir à série, mas em poucos dias ali estavam, frente à TV, aguardando ansiosamente o início do episódio seguinte e, nesse contexto, surgiram brincadeiras como “é melhor não gostar mais de ‘fulano(a)’, senão ele(a) vai acabar morrendo também”. Esses gracejos costumam dar pistas importantes sobre o nosso funcionamento e, nesse caso específico, ajudam a tornar evidente a causalidade “se eu gostar dele(a), ele(a) irá morrer”, como se ao fã coubesse condenar por seu afeto ou salvar o(a) personagem por meio de sua indiferença para com ele(a). Em outras palavras, por meio da despretensiosa frase acabamos explicitando que, num nível inconsciente, tanto nos julgamos onipotentes, detentores de poder suficiente para fazê-los viver ou morrer, quanto temos registro da destrutividade que o nosso amor pode carregar. Além disso, a pessoa na qual esse mecanismo opera terá que se haver, inevitavelmente, com as mortes já ocorridas em consequência de seu apego, ou seja, com um sentimento inconsciente de culpa oriundo das “vidas” que tirou “sem querer”, além daquelas que, em sua onipotência, se sente capaz de ceifar. Isso abre caminho para uma tentativa de reparação por meio do afastamento, onde não é mais possível deixar envolver-se pelos personagens objetos de sua afeição, sob a pena de vê-los destruídos, com o objetivo último de atenuar a culpa e seguir acompanhando a série.

Em outros casos, contudo, as mortes de personagens queridos podem ser atribuídas à uma atitude sádica dos produtores ou do autor, resultando numa postura retaliatória, por parte dos fãs, que se prestam a externalizar seu “rompimento unilateral” com a série, tendo dois desdobramentos frequentes: (1) a culpa inconsciente por ter sido a figura ativa na “separação”, faz o sujeito voltar atrás, esvaziando a carga emocional de suas frustrações e exaltando as qualidades da obra audiovisual, o que, normalmente resulta numa “reconciliação”; e (2) após algumas poucas semanas “dando um gelo”, conclui-se que a punição alcançou seu objetivo e encaminha-se sua revogação, que, normalmente, implica assistir os episódios perdidos.

Percebam que seja no primeiro caso ou nos dois últimos, o sujeito sempre encontrará uma forma de não se separar da série em definitivo, muitas vezes, renunciando aos resquícios de seu descontentamento, salvo nos casos em que a angústia por ela gerada extrapolar a tolerância individual. Assim, na maior parte das vezes, Game of Thrones é bem sucedida em produzir nos seus espectadores os sentimentos de amor e ódio - uma sensação “agridoce”, como o autor costuma dizer - ambivalência característica dos relacionamentos amorosos, fundando e estreitando laços de modo a tornar difícil a separação.

Ainda podemos falar das abundantes cenas de sexo e de violência explícitas, que nos remetem aos primórdios pré-civilizatórios da raça humana: uma época em que ainda não havia barreiras aos impulsos amorosos ou agressivos e podíamos atuá-los livremente. Esse tempo pode estar distante, mas uma vez que nascemos não civilizados - como vimos no texto sobre a natureza humana - guardamos seus resquícios e com eles travamos batalhas homéricas a todo momento, na tentativa de impedi-los ou encontrar meios substitutivos para que se expressem. Assim, fica mais fácil entendermos como a visualização de cenas tão cruas pode capturar nossa atenção de maneira quase hipnótica, ainda que envolvam um grande mal-estar pela identificação com os personagens-vítima: também nos identificamos, mas inconscientemente, com o agressor em nosso sadismo reprimido, o que faz dessas cenas o meio perfeito para a realização de tais impulsos através da ficção, em substituição a atuá-los no dia a dia. 

Inclusive, na primeira temporada da série, as cenas do personagem Crasler sintetizam perfeitamente a alegoria descrita por Freud em Totem e Tabu (1913), retratando uma horda primitiva na qual um grande pai, a quem tudo era permitido, expulsava os filhos, obrigando-os lutar pela sobrevivência e a formarem suas próprias hordas, enquanto desposava as filhas, que gerariam suas novas esposas e concorrentes exilados. Na série, o destino dos filhos homens é outro, mas na história freudiana eles, um dia, retornam e se unem para matar o pai tirânico, e, ao fazê-lo, cada um deles busca ocupar seu lugar, instaurando, como consequência, a barbárie. A carnificina só encontra um fim quando se percebe que era a lei, representada pelo pai agora morto, que os impedia de matarem uns aos outros e tomarem suas filhas e irmãs. Então, culpados pela morte desse pai admirado/odiado, os filhos e filhas erguem um totem para representá-lo e, assim, sempre lembrarem da importante barreira ao gozo desenfreado, instituindo o tabu do incesto, existente em todas as civilizações humanas. 

Alguns poderiam tentar refutar essa ultima colocação fazendo menção às tribos em que, ainda hoje, a iniciação sexual dos mais jovens se dá pelos mais velhos da mesma família, mas, mesmo nesses casos, o sentido ritual/religioso que rege tal costume remonta a lógica totêmica, posto que serve de lembrete vivo de que aquela prática, fora daquele contexto, é tão condenável que, em algumas culturas, pode até ser punível com a morte. Então, se pudermos dizer que o totem é o marco fundador da civilização, torna-se clara a razão pela qual Crasler era chamado de selvagem na série, mesmo tendo nascido ao sul da muralha; e esse não é, sequer, o caso de incesto mais relevante da trama. Isso posto, se relembrarmos o, já citado, artigo Reflexões em tempos de guerra e morte (1915), temos que “Uma proibição tão poderosa só pode ser dirigida contra um impulso igualmente poderoso. (Freud, 1915, p.306), o que nos leva a entender que há um forte desejo por trás do tabu, fundamento básico da teoria do Complexo de Édipo e outra razão pela qual Game of Thrones atrai nossa atenção tão facilmente. 

Ainda poderíamos falar dos Spoilers - que encontram um grande número de adeptos por tenderem a atenuar os sustos proporcionados pelas reviravoltas da série - da força das personagens femininas - fugindo ao padrão clássico da donzela indefesa e ascendendo ao protagonismo - do idioma dothraki (criado para a série) e das diferentes culturas representadas - que nos fazem sentir como estrangeiros numa terra exótica - além das religiões e histórias de fundo de alta complexidade - que compõem essa aura de plausibilidade dos acontecimentos e auxiliam na suspensão de juízo frente às premissas fantásticas da série. Entretanto, esmiuçar todos esses pontos deixaria o texto ainda maior, então proponho ficarmos por aqui, deixando o seguinte questionamento: o que te faz assistir ou não Game of Thrones, e o que isso revela sobre você?

Referências:

FREUD, S. (1913). Totem e Tabu. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol XIII. Rio de Janeiro: Imago, 2006
FREUD, S. (1915) Reflexões em tempos de guerra e morte. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006



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