terça-feira, 27 de setembro de 2016

Recurso à ficção nº2 - “500 dias” de paixão, e porquê Summer estava com a razão.

O presente artigo é um recorte feito à partir do trabalho “A compulsão à repetição no campo das paixões tóxicas a partir da analise do filme ‘500 days of Summer’ (500 dias com ela)”, desenvolvido em parceria com a psicóloga, à época estudante, Karine Szuchman, em 2011, como forma de avaliação da disciplina eletiva ministrada pelo professor e psicanalista Victor E. S. Bento, no Instituto de Psicologia da UFRJ. Este foi, sem dúvida, o ponto de partida do meu interesse pela clínica com casais, um dos fatores que, mais tarde, me levariam à atual Especialização em Psicoterapia de Família e Casal, na PUC-Rio. Espero que vocês gostem desta análise, e que ela os ajude na aquisição de novas percepções sobre si mesmos e seus relacionamentos, mas cuidado: contém Spoilers do filme!

500 days of Summer” (500 dias de Verão, em uma tradução literal, ou 500 dias com ela, como ficou conhecido no Brasil) é um filme que busca apresentar a versão do autor, Scott Neustadter, a respeito do fracasso de seu relacionamento com uma moça com quem se envolveu durante sua pós-graduação na London School of Economics, e que inspirou a personagem Summer Finn. Porém, segundo o próprio autor, em entrevista ao site ‘salon.com’, quando confrontada por seu roteiro, sua “musa” afirmou se identificar com o personagem Tom Hansen, o que o deixou convencido do não reconhecimento, por ela, das próprias ações e de sua “grande habilidade” em tirá-lo do sério. Mas será que é só isso? 

O enredo traz a perspectiva do personagem Tom e se inicia no dia 290, logo após o término do relacionamento, numa cena em que ele personifica seu vazio interior, quebrando pratos, um após o outro, sem demonstrar qualquer emoção até ser interrompido por sua irmã pré-adolescente, tida como a “última esperança” de seus amigos para fazê-lo recobrar a razão. Dali em diante, a trama procura alternar cenas ocorridas nos dias anteriores, que mostram a ascenção e o declínio do relacionamento, e aquelas ocorridas nos dias posteriores, onde o protagonista se vê às voltas com a falta e tenta encontrar soluções para ela. Esse recurso, aliado à divisão da tela entre as expectativas e a realidade, à expressiva trilha sonora e aos momentos em que Tom sonha acordado se deixando levar por suas fantasias, acabam por nos fornecer uma rica visão sobre a subjetividade do personagem, material que servirá de base para esta interpretação e que, a meu ver, faz de “500 dias” um exemplo quase didático sobre a paixão e de suas diferenças para com o amor.

O filme começa com a seguinte advertência: “NOTA DO AUTOR: Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Especialmente você, Jenny Beckman. Sua ****!”. A agressividade contra a mulher escondida sob o pseudônimo é inegável, mas a ironia empregada acaba por disfarçar aquele em um momento bem-humorado, leve, arrancando pelo menos um sorriso de canto de boca de quem assiste. Entretanto, com a intervenção do narrador, logo na sequência, tudo se torna mais claro: “Essa é uma história em que um garoto conhece uma garota, mas estejam avisados: essa não é uma história de amor”. É uma história sobre a paixão - eu complementaria, e vocês entenderão o motivo.

Resumindo, Tom é um arquiteto frustrado que leva uma vida medíocre e entediante trabalhando como escritor de cartões, destes que damos e/ou ganhamos em “ocasiões especiais”, vivendo uma vida sem brilho até que avista Summer, a secretária recém-contratada pela firma. Nesse momento, o narrador nos conta que o personagem “cresceu acreditando que nunca seria verdadeiramente feliz até que encontrasse a mulher de sua vida” - uma idealização de que seria possível sentir-se completo, pleno, uma vez que encontrasse essa “musa, até então, sem rosto” - e que “soube, quase imediatamente”, que ela era essa mulher - atribuindo instantaneamente, portanto, um rosto à tal musa. Estamos falando do tal “amor à primeira vista”, que, arrisco dizer, todos já sentiram alguma vez na vida e que de amor nada tem. Amor seria o endereçamento de uma significativa porção de afeto a um outro, ou seja, pressupõe o reconhecimento consciente da alteridade, das diferenças entre os dois envolvidos, seus acertos e falhas, além da noção básica de que esse outro não é capaz de te oferecer completude e que pode até ser irritante, decepcionar e magoar de vez em quando, mas ainda assim é desejável tê-lo por perto. Tom, por sua vez, não conhecendo nada sobre Summer, tem na moça uma “tela em branco” sobre a qual pode projetar sua musa idealizada, aquela que será capaz de tirá-lo de sua miséria e alçá-lo à tão desejada completude: ela seria, para ele, “a outra metade da laranja”. Concluindo, Tom está apaixonado.

A narrativa também mostra o quanto essa paixão pode criar distância entre o sujeito e o objeto de sua adoração: Tom, vendo Summer como sua musa, sente-se tão aquém dela que tem grandes dificuldades em se aproximar, como se o risco de tentar alcançar o paraíso fosse, para sempre, perdê-lo junto ao seu ideal de “verdadeira felicidade”. O protagonista idealiza o encontro, mas não se sente capaz de torná-lo realidade, até que a moça resolve encurtar essa distância psíquica imposta por ele e, no elevador, quebra o silêncio dizendo amar a banda responsável pela música melancólica que ele vinha escutando em seu Headphone - um símbolo claro de seu fechamento ao contato. O rapaz demora a acreditar que a jovem descera do pedestal, no qual ele a pusera, e se dirigira a ele para dizer ter, com ele, um interesse em comum, dando uma nova dimensão ao seu apaixonamento: no lugar da distância, a possibilidade de proximidade, e no lugar daquilo que falta, daquilo que o completaria, aquilo que é igual, que coincide.

Tom e Summer começam a se envolver, ambos entorpecidos pela paixão, vivendo intensamente a ilusão de completude fornecida por esse encontro com uma projeção de si mesmos sobre o outro. O protagonista passa a se mostrar seguro e bem-humorado, e, inspirado por esse turbilhão passional, começa a escrever as frases mais sensíveis e perspicazes para a empresa na qual trabalha, conquistando maior destaque profissional. No encontro com a moça, ele acha graça das coisas mais bobas e minimiza qualquer situação que fuja à ilusão de perfeição, recusando-se a ver Summer por quem ela realmente é: uma pessoa que, por mais que tenha alguns interesses em comum com ele, também possui seus próprios pontos de vista e aspirações, muitas vezes divergentes. 

É preciso dizer, no entanto, que esse é um processo bastante normal - e a ex-namorada do autor que o diga: é por isso que temos tanta facilidade em nos identificar com Tom, pintando sua musa como uma “sem-coração” que acenara para ele com a possibilidade de uma vida a dois, mas que se recusa e busca o rompimento, casando-se com um terceiro. Contudo, o que frequentemente nos escapa à percepção quando assistimos ao filme - não por acaso - é que a moça também estava apaixonada por Tom, mas que à partir de um certo ponto, sua idealização projetada sobre ele começa a ruir e ela se vê diante de um homem falho, que não a completa, e que parece incapaz de abrir mão da imagem idealizada que tem dela, de vê-la por quem ela é. Sozinha nessa relação com um cara que insiste em rir das mesmas bobagens dos tempos apaixonados e não enxergar sua subjetividade, Summer não consegue ascender ao amor e busca o rompimento, vindo a relacionar-se com um homem que, provavelmente, fora capaz de apaixonar-se, desapaixonar-se e, então, amá-la. Percebam, portanto, que não há nada de errado em apaixonar-se, aliás, quase todo relacionamento começa por essa via, mas em algum momento é preciso abrir mão dessa ilusão de completude para que, enfim, se possa enxergar o outro enquanto sujeito, para além de um objeto-espelho de si, e permitir o afloramento do amor.

Após o término do namoro, Tom ainda volta a ser frustrado em suas esperanças de reconciliação e passa por uma comovente luta na tentava de se haver com o vazio deixado pela perda da parte de si projetada na musa, bem como da ilusão de completude, por ela, proporcionada - e aqui cabe um adendo: Todo rompimento produz um vazio, pois, também no campo do amor, a quantidade de afeto investida no outro fica, momentaneamente, sem lugar até poder ser reinvestida no Ego e em outros objetos de afeição, o que dá origem a um processo de “luto pelo objeto de amor perdido” que, quando superado, promove a indiferença ou à reconfiguração da relação como amizade. Contudo, no primeiro caso, por ignorar completamente as causas que levaram à separação e sua própria parte nisso, o(a) apaixonado(a) tende a interpretar a postura do outro como abandono, podendo reagir com o ódio ou a culpa - um ódio dirigido, inconscientemente, a si mesmo como punição por um mal cometido. Notem, também, que tanto o ódio quanto o amor/paixão são sentimentos poderosos que mantém a conexão entre as partes, e que, portanto, podem estar a serviço de uma recusa em aceitar, de “fazer vista grossa” para crua realidade do rompimento, enquanto a indiferença ou a amizade, sim, representariam a possibilidade da verdadeira separação e superação das questões a dois.

Retornando à narrativa, Tom leva bastante tempo nesse processo, deixa a firma na qual trabalhava e resolve dar ouvidos ao seu desejo, investindo na Arquitetura e encontrando na carreira uma motivação para alem de Summer. Nesse momento, ele parece estar começando a relativizar sua noção idealizada de “felicidade verdadeira”, dando-se conta de que a maior parte de sua satisfação, enquanto sujeito, depende mais dele do que da ilusão de completude junto a um objeto de afeição, mas isso não chega a se concretizar: ele reencontra Summer e ainda parece vivenciar a partida dela como abandono, apesar de se mostrar mais forte em sua autoestima. E o resultado previsível de uma questão tamponada (varrida para debaixo do tapete ou não verdadeiramente superada) como a do protagonista é a repetição: o tal “dedo podre” ou o “acaso”, entidades a quem costumamos atribuir a responsabilidade pelas sucessivas más escolhas e fracassos amorosos; Tom, saindo de uma entrevista de emprego, conhece a jovem Autumn (Outono), zerando a contagem dos “500 dias” para um novo ciclo que, provavelmente, também o levará ao céu e ao inferno. 

Essa tendência à repetição é um mecanismo psíquico inconsciente através do qual tentamos buscar novas percepções sobre uma vivência que não conseguimos simbolizar, ou para a qual ainda faltam compreensões, de onde conclui-se que após ter vivido seus 500 dias de Verão - referência ao título em sua tradução literal - (com Summer), o personagem apaixonado viverá os 500 dias de Outono (com Autumn) e, quem sabe, 500 dias de Primavera e de Inverno antes que consiga entender sua parte nos fracassos de seus relacionamentos. Só então, ele poderá produzir uma nova escrita, saindo de sua sina melancólica para ver sua próxima companheira por quem ela é, sem atribuir-lhe a responsabilidade por sua felicidade ou completude, alcançando o patamar a que sua primeira musa pôde chegar: o amor, o estado de querer-ficar-com-apesar-de.


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