segunda-feira, 18 de julho de 2016

Convite à Reflexão nº2.1 - O Terrorismo Nosso de Cada Dia

É com bastante tristeza, e um relativo senso de necessidade, que eu trago a vocês, como segundo convite à reflexão, o tema da guerra e da morte em vista dos ataques terroristas ocorridos na Europa e nos EUA nos últimos anos, dos conflitos no Oriente Médio, como os da Síria e do Iraque, e do aumento expressivo do número de crimes violentos no Brasil. Quero esclarecer, no entanto, que não é a minha intenção trazer uma perspectiva histórico-geopolítica dos fatos, debater políticas públicas ou advogar em favor de militâncias, mas propor um enfoque psicológico-autocrítico sobre o assunto. Sejam bem-vindos à primeira parte dessa minha exploração!

Sigmund Freud (1856 - 1939), pai da Psicanálise, vivenciou de perto os horrores da primeira Guerra Mundial (1914), na qual perdeu entes queridos e amigos próximos, e os anos que precederam a segunda (1939), quando se viu forçado a deixar Viena para buscar abrigo em Londres como forma de fugir da perseguição nazista em razão de sua origem judaica. Veio a falecer algum tempo depois, na cidade que o acolheu, vítima de um agressivo câncer no palato*, semanas depois da invasão da Polônia pela Alemanha de Hitler, tendo fundado a IPA (International Psychoanalytical Association) e deixado uma vasta obra com grande relevância até os dias atuais. 

Esse breve resumo nos permite supor, com alguma segurança, que teria sido quase impossível que eventos tão significativos não houvessem impactado sua obra de alguma maneira, e, talvez, a prova mais clara disso seja o artigo, publicado no ano seguinte ao do início da Primeira Guerra, denominado Reflexões para os tempos de guerra e morte (1915). Nele, Freud procura nos deixar suas habituais contribuições psicanalíticas, mas vai além e nos oferece acesso ao importante e denso sentimento de “desilusão”, vivenciado por ele ao ver ruir, com o desenrolar do conflito, a ilusão de segurança por integrar uma nação civilizada em meio a outras de valores semelhantes. E é aqui que pretendo fixar o ponto de partida para essa primeira proposta de reflexão sobre o assunto. 

Nas palavras do autor:

“Dentro de cada uma dessas nações, elevadas normas de conduta moral foram formuladas para o indivíduo, às quais sua maneira de vida devia conformar-se, se ele desejasse participar de uma comunidade civilizada. Esses ditames, não raro demasiado rigorosos, exigiam muito dele - uma grande dose de autodomínio, de renúncia à satisfação dos instintos. (…) Devia-se supor, portanto, que o próprio Estado os respeitaria e não pensaria em empreender contra eles qualquer coisa que viesse a contradizer a base de sua própria existência. (…) Poder-se-ia supor, porém, que as próprias grandes nações adquiriam tanta compreensão do que possuíam em comum, e tanta tolerância quanto a suas divergências, que ‘estrangeiro’ e ‘inimigo’ já não podiam fundir-se tal como na Antiguidade clássica, num conceito único.” (Freud, 1915 [2006], vol XIV, p.286)

Olhando por esse ângulo, até poderíamos pensar que mesmo ocorrendo uma disputa bélica, ambas as partes procurariam preservar tudo aquilo que não faz parte da engrenagem de guerra, como os não-combatentes e construções não militares. Contudo, não foi isso que Freud constatou na época, da mesma forma que não é o que constatamos hoje diante dos recentes atos de terrorismo e das táticas de guerrilha adotadas nas guerras modernas. Ele sintetiza essa experiência nas seguintes palavras: 

“Então, a guerra na qual nos recusávamos a acreditar irrompeu, e trouxe a desilusão. Não é apenas mais sanguinária e mais destrutiva do que qualquer guerra de outras eras, devido à perfeição enormemente aumentada das armas de ataque e defesa; é, pelo menos, tão cruel, tão encarniçada, tão implacável quanto qualquer outra que a tenha precedido. Despreza todas as restrições conhecidas como o direito internacional, que na época de paz os Estados se comprometeram a observar; ignora as prerrogativas dos feridos e do serviço médico, a distinção entre os setores civil e militar da população, os direitos da propriedade privada. Esmaga com fúria cega tudo que surge em seu caminho, como se, após seu término, não mais fosse importante haver nem futuro nem paz entre os homens. Corta todos os laços comuns entre os povos contendores, e ameaça deixar um legado de exacerbação que tornará impossível, durante muito tempo, qualquer renovação desses laços.” (Freud, 1915 [2006], vol XIV, p.288)

Trazendo a problemática desse trecho para os dias atuais, nota-se fenômenos semelhantes: as armas são drones não-tripulados, mísseis teleguiados, tiros anti-blindagem e bombas presas ao corpo; os civis tornam-se escudos e alvos de grupos que encontram, nessas táticas sórdidas, a única maneira de enfrentar as superpotências globais, que por sua vez, admitem frequentemente não-combatentes entre as baixas aceitáveis. Os laços se desgastam mais e mais, segregando o “mundo islâmico” do “mundo Judaico-Cristão”, acirrando a xenofobia e a islamofobia entre os habitantes do ocidente, com consequências de difícil reparação, talvez até impossível. 

Mas e aqui, no quintal de casa? O Brasil não participa, atualmente, de nenhuma guerra externa, mas certamente ostenta números dignos de uma. Segundo dados coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança pública e noticiados no portal de notícias G1, em 2014 registramos mais de 58.000 mortes violentas, valor comparável com o de civis mortos no conflito na Síria, informado no site da BBC Brasil. Se nos permitirmos interpretar esses números à luz do texto freudiano, guardadas as devidas proporções em relação ao terrorismo, podemos fazer algumas aproximações coerentes e importantes para melhor avaliarmos o lugar que ocupamos neste cenário. Podemos dizer que entre as armas estão os fuzis, camburões, bombas de gás e caveirões; a tática dos bandidos, com a qual eles mantêm suas áreas de influência frente ao Estado, é a intimidação dos moradores das áreas mais pobres, procurando torná-los cúmplices-reféns de suas atividades, escudos humanos contra uma polícia que, depois de tantos anos de incursões em comunidades, tende a enxergá-los como baixas aceitáveis. Essa pode ser a causa e, ao mesmo tempo, a consequência de uma ruptura dos laços sociais que nos manteriam unidos enquanto povo, tornando, cada vez mais difícil para os “moradores do asfalto”, enxergar com humanidade e acolherem os “refugiados da periferia”, dando origem, talvez, a uma “xenofobia de classes”.

Vendo por esse ângulo e levando em consideração os pontos expostos por Freud em 1915, podemos, verdadeiramente, nos questionar se não vivemos, hoje no Brasil, uma guerra não declarada, velada, onde nossa sensação de segurança sofre constantes atentados dando lugar à desilusão. Se não somos, diante dela, baixas aceitáveis ou até prováveis (no caso do morador da favela). Se não fazemos parte dela enquanto um pequeno dente da engrenagem perversa que a move por meio de uma eventual conivência, revolta seletiva, discursos generalizadores e de ódio, independente da vertente política. 

Diante desse panorama, a única certeza que podemos ter é a de que se trata de uma trama complexa para a qual não existe solução mágica.

Continua…


      * O palato é o “céu da boca”, ele separa a cavidade oral da cavidade nasal.
     


Referências:

FREUD, S. (1915) Reflexões em tempos de guerra e morte. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol XIV. Rio de Janeiro: Imago, 2006



2 comentários:

  1. Grande texto. Pra mim não há dúvidas de que vivemos uma guerra não declarada e muitos de nós não nos damos conta disso (ou não queremos enxergar). Acredito que existam duas grandes diferenças fundamentais: Ao contrário dos terroristas, ninguém aqui está disposto a se explodir todo por uma causa e o segundo motivo é um complemento do primeiro: talvez não haja a percepção dos motivos que levam a essa guerra urbana.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Com certeza, Renan! A motivação dos terroristas é, sim, bem diferente daquela do criminoso comum, concordo. Entretanto, o fato dessa guerra urbana ser, muitas vezes, imperceptível aos olhos do morador do asfalto, pode estar ligado (1) à ilusão de segurança da qual falei, que nos cega para a violência urbana que ocorre longe de casa, e (2) à dificuldade de ver com humanidade os moradores de favela. Pode, ainda, ser alguma outra coisa que não considerei, mas é interessante pensarmos que a guerra está aí para quem quiser ver, e muitos escolhem, de maneira consciente ou não, fazer vista grossa...

      Excluir