segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Convite à reflexão nº3 - Sujeito ou tecnologia: de quem é a culpa?

Terminada a “trilogia” de textos mais densos, proponho retornarmos à relação entre o ser humano e a tecnologia, pegando carona nos recentes bloqueios judiciais ao “WhatsApp” e na febre internacional do “Pokemon Go” para pensarmos o que, de fato, está em jogo quando culpamos os dispositivos eletrônicos pelos males do modo de vida contemporâneo. 

Começando pelo aplicativo de mensagens instantâneas, procurem se lembrar do quanto nos sentimos prejudicados à ocasião da sentença que ocasionou a breve suspensão do serviço em todo o território nacional. É verdade que com possibilidade de nos comunicarmos sem custo, de forma objetiva e em tempo real, tanto os relacionamentos quanto o mundo do trabalho sofreram importantes transformações, mas, ainda assim, seria de se esperar que voltar a usar mensagens SMS, e-mails, fazer ligações e olhar nos olhos por um prazo inferior à 24 horas não fosse representar um baque tão grande assim. Entretanto, muitos de nós ficaram desorientados, irritados e ansiosos, e acabaram culpando o juiz responsável pelo procedimento legal, ao invés da empresa que descumprira a determinação de colaborar com investigações criminais em andamento. Esses sintomas, característicos da abstinência de substâncias, e essa inversão conveniente de valores nos dizem muito sobre o quanto nos tornamos dependentes desse tipo de tecnologia, tanto que alguns, incapazes de aceitar a privação, investiram seu tempo em tutoriais que ensinavam formas de burlar o bloqueio ou optaram por migrar para concorrentes como o “Telegram” e o “Messenger”.

Alguns até poderiam argumentar que a decisão judicial fora arbitraria, alegando que o aplicativo apenas cumpriu o compromisso de preservar o direito à privacidade de seus clientes, mas se concordarmos com essa linha de pensamento, por uma questão de coerência também teremos de nos posicionar em contrário às quebras dos sigilos bancários e telefônicos de investigados por corrupção e outros casos semelhantes, afinal, também nessas situações a privacidade é posta em cheque. Supondo, portanto, que a privacidade fosse um direito inviolável, teríamos que nos acostumar à investigações ainda mais ineficientes e ineficazes, e a uma impunidade muitas vezes maior do que a de hoje, que já nos gera tanta revolta. Nem mesmo a liberdade de expressão, um dos direitos mais importantes garantidos na constituição de 1988, é absoluta, encontrando barreiras na própria lei quando esta nomeia os crimes de racismo, injúria, assédio moral e tantos outros; o próprio direito à vida pode ser posto de lado ante uma situação de guerra externa e, por muito menos, em países que possuam pena de morte. Feitas tais considerações, podemos concluir que nenhum direito deve ser absoluto quando se vive em sociedade, uma vez que o direito de um, eventualmente, acabará balizado por um dever para com o outro.

Muitos poderiam, também, defender que não há nada de errado em nos adaptarmos às facilidades e demandas da Era da Informação - e não há mesmo - mas devemos sempre estar atentos aos casos em que nos utilizamos da tecnologia para substituir o contato social significativo. Podemos citar, como exemplo, membros de uma família que, dentro de uma mesma casa, se comunicam por meio de mensagens e se isolam em seus computadores pessoais, cada um no seu canto. Podemos falar de jovens que, numa mesma mesa de bar, se refugiam em conversas virtuais, cada qual em seu smartphone, com pessoas ou grupos não-presentes. Também podemos mencionar os casos mais graves onde, diante da oportunidade de resolver tanta coisa ou “encontrar” tantas pessoas sem sair de casa, o sujeito acaba por confinar-se à sua residência, às vezes ao seu quarto. Diante desses cenários, podemos pensar que aplicativos como o “WhatsApp”, ao mesmo tempo que  possibilitam manter contato com quem está longe, nos permitem o isolamento por meio da atenuação da solidão, ou seja, diante da ilusão de estarmos constantemente conectados a inúmeras pessoas, podemos prescindir de todas elas na realidade. Assim, se aceitarmos essa premissa, torna-se mais fácil entender a razão de certas reações ao bloqueio judicial do serviço de mensagens, afinal, na ausência dessa ilusão de conexão, somos obrigados a lidar com a solidão e com o distanciamento que nós mesmos criamos em relação a nossos pares.

Por outro lado, nem sempre a mediação das relações por meio da tecnologia é algo negativo. Vejamos o exemplo do recém lançado “Pokémon Go”, um jogo de realidade aumentada para smartphone onde você precisa caminhar pelas ruas e parques da sua cidade, utilizando o GPS do aparelho para encontrar e capturar os monstrinhos que aparecem, tendo a oportunidade de interagir virtualmente com grafítis e outros marcos da paisagem real para adquirir certos itens necessários ao progresso na campanha. Trata-se de um convite à abandonar o sedentarismo, à conhecer pessoas e a perceber as paisagens que nos cercam, um aplicativo que fora capaz de tirar de casa um menino autista e de fazer as crianças de um hospital infantil caminharem e se exercitarem durante a internação. Contudo, também multiplicam-se as notícias que tratam da conduta perigosa de alguns usuários, causada pela distração ao caminhar ou dirigir com os olhos na tela, ou mesmo de ações arriscadas como a invasão de propriedades privadas e natação em rios com forte correnteza à procura de Pokémons mais raros.

Perceba que seja no “WhatsApp”, no “Pokémon Go” ou em qualquer outro aplicativo ou software, sempre poderemos observar pessoas que utilizam a tecnologia sem prescindir dos relacionamentos e da convivência, sem se expor a riscos e aproveitando as potencialidades dos dispositivos, enquanto outros se valem dos mesmos em prol do isolamento ou de uma exposição exagerada ao perigo. Assim, podemos concluir que há algo, no sujeito, capaz de direcionar esse uso: uma escolha, ainda que inconsciente, apoiada num desejo, nem sempre, conhecido por ele. Em outras palavras, um sujeito pode estar completamente alheio às razões pelas quais se relaciona com a tecnologia de modo disfuncional, mas o simples fato de fazê-lo pode fornecer pistas importantes sobre como ele mesmo ou terceiros - familiares, amigos ou cônjuges - podem ajudá-lo.

Privar um jovem de seu aparelho celular ou de seu computador, por exemplo, embora possam parecer medidas adequadas às circunstâncias, provavelmente só lhe trarão a angústia do isolamento e o ódio contra quem lhe impôs tais privações, afinal, grande parte das relações sociais atualmente acontecem através de mensagens instantâneas e em ambientes virtuais. Por outro lado, se, ao invés da crítica e da punição vier o interesse pela forma como o sujeito se relaciona com a tecnologia, ou seja, uma aproximação por curiosidade e não por estranhamento, poder-se-á criar uma oportunidade de alcançá-lo e fazer com ele um vínculo reforçado capaz de, aos poucos, puxá-lo de seu posicionamento autodestrutivo para um novo, menos danoso. É certo, no entanto, que, muitas vezes, as angústias, mágoas e rancores, de parte a parte, entrarão em cena como elemento crítico, reforçando as resistências e impedindo a aproximação desejada. Nesses casos, é importante que se procure ajuda profissional: alguém que será capaz de posicionar-se num polo neutro e, portanto, de minimizar essas variáveis e manejar os conflitos do sujeito, fornecendo ao paciente os meios internos de promover a própria saúde.

Todavia, tanto o movimento de ajudar quanto o de nos permitir sermos ajudados dependem da compreensão de que o problema está na escolha do indivíduo e não na plataforma virtual, o que pode se provar bastante difícil. Afinal, ao admitirmos que uma parte de nós deseja o isolamento, o desafio à morte através da submissão ao perigo real ou o exercício do controle e da posse sobre os outros, estaremos recebendo um forte golpe contra nosso ideal narcísico ou, ainda, estaremos diante da possibilidade de deixarmos o lugar com o qual estamos familiarizados por um sobre o qual nada sabemos. Além disso, também pode se mostrar complicado o reconhecimento de que nossos entes queridos vivenciam tais questões, posto que isso também implicaria abrirmos mão da imagem idealizada que temos deles. 

Diante da eventual impossibilidade de situarmos o problema no sujeito, nos restará localizar o mal-estar daí proveniente nos dispositivos eletrônicos, um “bode expiatório” capaz de sobreviver aos ataques e recriminações morais e, ao mesmo tempo, incapaz de retrucar ou revidar.

Referências:

Matéria sobre menino autista: 

Hospital Infantil utiliza Pokémon Go para tirar crianças da cama:


2 comentários:

  1. Ótimo texto, meu querido! A verdade é que nós ainda não sabemos lidar com a tecnologia, ou melhor, com a evolução dela. Quando as primeiras máquinas de telecomunicação surgiram, a ganância em diminuir cada vez mais a barreira da informação foi tão grande que resultou numa evolução tão grande e tão rápida. O que foi fantástico, mas ao mesmo tempo muita coisa para assimilar. Pensa só, até 10 anos atrás vivíamos no MSN e agora temos basicamente um MSN nos celulares. 20 anos atrás, internet era basicamente inexistente. Acho que ainda estamos assimilando essa inserção da tecnologia na sociedade, só que não dá tempo de assimilar o que já temos que já somos bombardeados por coisa nova. Chega a ser exaustivo, fazendo com que as pessoas se enfurnem mais nas suas bolhas de conforto. E te digo, eu mesmo incluso, porque considero meu computador basicamente meu mundo hoje em dia. É minha fonte de trabalho e lazer.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Essa autocrítica é importantíssima, meu caro! Sobre o rápido avanço da tecnologia e a obsolescência programada, eu pretendo me debruçar num próximo texto, trazendo um pouco da discussão sobre os valores contemporâneos e a sociedade de consumo; será um bom complemento a este trabalho, como você bem notou.

      Excluir